Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
6/25/2010
O inesperado retorno ao Inferno
Tem dias em que a vida é inviável. É como descer ao inferno mais uma vez, e você se pega pensando se vai dar conta do recado. Se vai conseguir sair dali de novo. Não aquele papo de auto-ajuda que diz: o que não me mata me torna mais forte. Mas, sair dali como sobrevivente mesmo. No inferno acontecem coisas engraçadas, pra quem vê de fora. Por exemplo, você é obrigado a comer girassol em pó. Dá uma sede insuportável. Todo o tempo você pensa que alguém está falando com você e você pergunta: é comigo que você está falando? A pessoa responde: não é com você. No inferno as pessoas são estrábicas, você inventa qualquer desculpa pra explicar porque as pessoas não falam com você olhando nos olhos. Quando é muito menos do que isso: elas não falam com você. As palavras vão passando por cima da sua cabeça, passam de raspão, arrancam pedaços de carne, vão em frente manchadas de sangue. Vão regar, bem ao longe, um grotesco girassol vermelho. E tem mais que isso. Você pode passar horas, dias, conversando com alguém e de repente você descobre que aquela conversa nunca existiu. Você entrou ali como estrangeiro, sentiu que uma hospitalidade ia criando um lugar familiar, confortável, mas é devolvido como estrangeiro mesmo. Que você nunca deixou de ser. E você acorda no inferno – de onde, se você tivesse prestado atenção, você não tinha saído. No inferno as pessoas repetem os mesmos erros e dizem que não querem mais isso, pedem seu auxílio, mas depois você descobre que o próprio pedido de auxílio fazia parte do erro, era o início da repetição. No inferno é como andar na rua de uma cidade em que as placas existissem, mas estivessem todas apagadas. Você chega perto da placa, é claro então que você está perdido, e vê que não tem nada escrito. E você pensa que é o único, que o inferno é seu e singular. Mas é desse mesmo jeito que seus companheiros de vida infernal te vêem. Você é um idiota robotizado que comete os mesmos erros. Você não fala com ninguém e não olha ninguém nos olhos. Você também parece estrábico. O pior disso tudo, porém, é que cada um tem que suportar o mesmo inferno, na mesma solidão, no mesmo buraco, no mesmo barco, mas é impossível, sabe-se lá como, que as pessoas saibam que estão no mesmo lugar. Você já esteve no inferno, então sabe muito bem onde está entrando, quando a sua guia, que antes parecia tão delicada, te conduz até aquelas portas, aquelas terríveis portas, que rangem como alguém que não consegue respirar direito e procura o ar com violência. Vamos ser claros, como alguém que chora além das próprias forças. A sua guia, mas tudo parecia estar se tornando tão seguro, ela tinha um girassol nas mãos, você se lembra?, tudo parecia tão seguro; você estava distraído (olhando-a nos olhos? Você tem certeza disso?), quando ela disse: é aqui que você fica - você sabe que ela não fez de propósito, talvez ela também esteja sendo levada ao inferno por alguém. Quem sabe, o guia dela não é você mesmo? Por uma espécie de magnetismo ainda mais lamentável é você que terá que abrir a porta, entrar no inferno, como se essa fosse a sua escolha. A única saída é atravessar o inferno, você puxa o ar e reza pra sair de lá vivo.
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Um comentário:
nossa.
e o inferno somos nós.
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