8/18/2011

A minha Carta ao Pai

O mundo hostil: a beleza do céu que se tinge de dourado a vermelho, passando por um azul que mais parece o leito do mar: como a luz é frágil frente ao vento que luta por apagá-la com sua boca de múltiplas mandíbulas frias: você apenas queria ter feito um mundo menor, mais hospitaleiro para suas crianças. Dói vê-las partindo no escuro rumo ao horizonte, num rio sem foz, numa noite sem estrelas, cada uma segurando apenas uma fraca lamparina. Não há tempo pra secar os olhos. Você plantou sementes de fragilidade e elas brotaram como feridas, minúsculas, na torrente que alguns ainda teimam em chamar de cosmos.
Nesta noite sob uma luz estranha, pálida, uma espécie de demônio circulava pelo meu apartamento. Deu pra ver, de relance, o minotauro passando além do espelho. Barulhos de coisas se mexendo na cozinha vazia. Quem teria motivo para me rogar uma praga e fazer de minha vida um ritual de magia negra. Alguém mastigava os restos de comida e ria com a boca cheia de lixo. Não somos nada perto do mundo e suas razões, fomos expulsos (ou nos expulsamos) de todas as hordas. Remamos sozinhos e já não sabemos se o flutuamos sobre o rio, o vento, ou um céu de pontacabeça.
Com o pouco de calor que herdei de você, e que você por sua vez herdou de outros, preparo um leve equipamento de mergulho. Crio ao meu redor uma fina capa de silêncio que reflete o ódio e abraça o amor. Não sou tão frágil como você pensa.




Um comentário:

Aldemar Norek disse...

ácido e direto.
a gente só não sabe se o Pai abre as cartas.
Abraço!