Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
5/03/2012
Trevosa (no fim do mundo)
(1) A (doravante assim chamada por codinome) Trevosa é ateia. Isso a aproxima de mim, que não respeito o sentimento alheio e vejo em todo relacionamento, como nas pessoas, a marca de sua morte. (2) Traz a lembrança dela sentimento misturado, uma imprecisão. Um aroma acre. De um lado, sei que ela não me entende. E nem faz força pra fingir querer. De outro, é mortalmente carente, quer ser amada em cada poro - não necessariamente por mim, claro. Mas essa indiferença me estimula, faz pensar que meus jogos de sempre com quem me valoriza dessa vez não são aplicáveis, meu leito de Procusto. Posso vê-la mais como ela é na medida em que ela se furta a mim. (3) Por outro lado, com ela estou em pleno adultério, e a Clara que me ama também é diferente de outra forma. Arrumei meios de não cansar dela, eu a mantive. Dessa sou eu a divergir, a me furtar de sua crença em nós dois. Daí eu estar usando esse texto, perdido em algum lugar, pra dizer o que não posso ser lido por ninguém que eu conheça sabendo que sou quem escreve. E a Trevosa não teria o menor interesse em lê-lo. Ela é inculta, não compreende termos ligados à sua própria cultura (como diabos pode uma trevosa não saber o que é "esquife"?) e não tem paciência para ouvir uma música por mais de três minutos. Claro, ainda por cima é mais nova do que eu. Preciso lembrar de seu aniversário. (4) Engraçado como o "io" no final de "aniversário" assemelha-se gráfica e foneticamente à letra "ю" do alfabeto cirílico. Um comentárю como esse renderia o mais solene bocejo da boca perfurada da Trevosa. Mas eu escrevo: relicárю, aniversárю, otárю. Seu aniversárю, portanto, é no quadrado de meu número de sorte, o 5. Bobagens que eu mantenho na cabeça pra tentar lembrar dela como um todo, algum todo - pelo menos o plano matemático inteiro, como pode ser subentendido num simples algarismo. Ó grande número escrito no muro... (5) Sobre a Clara, eu lembrei agora de uma estória. Assim que terminamos, ela virou evangélica. Não uma evangélica qualquer, mas daquelas que têm blog, divulgam a palavra de Deus e são militantes no conservadorismo. Pois bem, depois de tudo consumado, eu e Trevosa nos juntamos. Tivemos um filho, que ambos concordamos chamar de Nereu. Dada minha avançada idade e a marca do fim em todas as coisas, morri. No céu, encontrei a Clara. Ela estava na beira de uma praia linda, numa alvorada, toda vestida de branco. Sentei a seu lado. Ela, toda feliz, disse com intimidade: "viu, seu teimoso atrabiliárю, como Deus existe?" e respondi "existe nada, olhe pra esse lado: somos apenas personagens de um conto escrito num pedaço de papel por alguém com saudades da Trevosa".
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