Nasço como um bêbado que entra num quarto escuro com peças de
cristal. Não tenho o direito de estar ali onde me “vejo”, mas sinceramente,
quem está falando em direito depois do fato consumado. Quando dou por mim, a
porta está trancada não sei a quanto tempo. Como vim parar aqui, é inútil
pensar – o que havia antes da porta, já que ter nascido é estar num quarto
escuro com peças de cristal antes mesmo de aprender a pronunciar a palavra eu. Talvez se eu me encolhesse, alguns
desastres seriam evitados – mas mesmo escolher um canto exige alguma
movimentação prévia e alguns objetos serão quebrados. É inevitável, como disse
o escorpião da piada: é a nossa natureza. E mais: também sou frágil como uma
peça de cristal, como você descobre rapidamente. Talvez seja essa a natureza de
que fala a piada: isso que chamamos de pessoas são fantasmas de cristal,
bêbados num quarto escuro, sonhando estar entre peças de cristal. Então, preste
atenção: você nasce como um bêbado que entra num quarto escuro com peças de
cristal – mas elas não estão paradas e sim em movimento – e vamos chamar esse
movimento de caótico para não humilharmos a fraqueza de nossa razão que
simplesmente não reconhece padrão algum, apenas estilhaços. E você é uma peça
de cristal entre outras – e mesmo que você diga: “eu tenho um coração, não sou
um mero estilhaço” – olhe bem, seu coração é tão invisível para você quanto o
coração alheio. Quem sabe se aquela ou esta peça que vai ser quebrada quando
você realizar seus desastrosos movimentos é parte sua ou alheia? Se você mesmo
não passa de um estilhaço de uma peça quebrada? Se isso que você chama tão
orgulhosamente de meu coração não
passa de um caco afiado voando sem direção? Quem disse que você não pode ser
seu próprio terceiro, o seu ele? E você pode dizer: mas o movimento é
resposta a um impulso natural e tudo o que é natural tem seus direitos – mas
quem está falando em direito depois do fato consumado.
Moral da história: Sempre que um intruso invade uma história alheia – como saber se
o intruso não é justamente o que estava ali antes, ou se a história alheia não
é a de um intruso que invadiu uma outra história alheia anterior e assim por
diante? Como sair dessa terrível solidão, se a saída também é movimento e só existe movimento porque existe espaço
alheio? Se mesmo a ilusão de ficar parado é estar no caminho de alguém, uma vez que só existe espaço em função de um
traçado – chamo de meu território ali onde julgo poder me movimentar (e só
existe movimento porque existe espaço alheio)? Os sujeitos mais racionais
já disseram que a resposta está no começo, no que vem antes (a aliança
original), outros tão racionais quanto, que a resposta está no final, o direito
é de tudo o que vem depois (só depois de mortos saberão o que fomos e dirão se
somos dignos de nossos estilhaços de felicidade), outros tão racionais quanto,
que a resposta está no próprio movimento (supondo que sejam livres). Mas eu li em
versos da Orides Fontela: não há piedade nos signos e nem no amor: o
ser é excessivamente lúcido e a palavra é densa e nos fere (toda palavra é
crueldade).