7/10/2013

Corações partidos (ao pé da letra)


Nasço como um bêbado que entra num quarto escuro com peças de cristal. Não tenho o direito de estar ali onde me “vejo”, mas sinceramente, quem está falando em direito depois do fato consumado. Quando dou por mim, a porta está trancada não sei a quanto tempo. Como vim parar aqui, é inútil pensar – o que havia antes da porta, já que ter nascido é estar num quarto escuro com peças de cristal antes mesmo de aprender a pronunciar a palavra eu. Talvez se eu me encolhesse, alguns desastres seriam evitados – mas mesmo escolher um canto exige alguma movimentação prévia e alguns objetos serão quebrados. É inevitável, como disse o escorpião da piada: é a nossa natureza. E mais: também sou frágil como uma peça de cristal, como você descobre rapidamente. Talvez seja essa a natureza de que fala a piada: isso que chamamos de pessoas são fantasmas de cristal, bêbados num quarto escuro, sonhando estar entre peças de cristal. Então, preste atenção: você nasce como um bêbado que entra num quarto escuro com peças de cristal – mas elas não estão paradas e sim em movimento – e vamos chamar esse movimento de caótico para não humilharmos a fraqueza de nossa razão que simplesmente não reconhece padrão algum, apenas estilhaços. E você é uma peça de cristal entre outras – e mesmo que você diga: “eu tenho um coração, não sou um mero estilhaço” – olhe bem, seu coração é tão invisível para você quanto o coração alheio. Quem sabe se aquela ou esta peça que vai ser quebrada quando você realizar seus desastrosos movimentos é parte sua ou alheia? Se você mesmo não passa de um estilhaço de uma peça quebrada? Se isso que você chama tão orgulhosamente de meu coração não passa de um caco afiado voando sem direção? Quem disse que você não pode ser seu próprio terceiro, o seu ele? E você pode dizer: mas o movimento é resposta a um impulso natural e tudo o que é natural tem seus direitos – mas quem está falando em direito depois do fato consumado.
Moral da história: Sempre que um intruso invade uma história alheia – como saber se o intruso não é justamente o que estava ali antes, ou se a história alheia não é a de um intruso que invadiu uma outra história alheia anterior e assim por diante? Como sair dessa terrível solidão, se a saída também é movimento e só existe movimento porque existe espaço alheio? Se mesmo a ilusão de ficar parado é estar no caminho de alguém, uma vez que só existe espaço em função de um traçado – chamo de meu território ali onde julgo poder me movimentar (e só existe movimento porque existe espaço alheio)? Os sujeitos mais racionais já disseram que a resposta está no começo, no que vem antes (a aliança original), outros tão racionais quanto, que a resposta está no final, o direito é de tudo o que vem depois (só depois de mortos saberão o que fomos e dirão se somos dignos de nossos estilhaços de felicidade), outros tão racionais quanto, que a resposta está no próprio movimento (supondo que sejam livres). Mas eu li em versos da Orides Fontela:  não há piedade nos signos e nem no amor: o ser é excessivamente lúcido e a palavra é densa e nos fere (toda palavra é crueldade).  


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