A história começa com a comissão de especialistas chamada pra resolver de uma vez por todas os embaraços da prática museológica, porque os gestores do patrimônio tinham notado que a prática já não acompanhava satisfatoriamente as seguintes conquistas teóricas: 1. o direito à memória é sagrado. 2. a preservação da memória é um dever da sociedade. 3. numa sociedade democrática todos têm o mesmo direito de participar da gestão da memória e da tradição. Isso colocava em xeque a noção do público passivo, babando diante de lustres de cristal de grandes figurões da alta sociedade morta.
A comissão concluiu, depois de um árduo trabalho reflexivo, que só havia uma solução para os museus, e que esta teria que ser extrema.
Seus integrantes começaram pensando que seria bom ouvir as pessoas interessadas na questão, ou seja, a população todinha. Como este trabalho seria incompatível com a duração de suas vidas, optaram por escolher uma rua de um bairro de qualquer cidade do país, o que fizeram por meio de um complexo sistema de sorteio, aplicando as normas ultra-democráticas da democracia grega. Indo à rua sorteada, os integrantes da comissão queriam que as pessoas dissessem o que elas achavam digno de ser museificado. O embaraço da comissão foi crescendo ao perceber que cada pessoa queria puxar a sardinha pro seu lado, dizendo que sua casa sim era fundamental, ou porque ela ajudava os mendigos da região, portanto seus objetos pessoais deviam ser preservados em formol, ou porque ela era dona do bar que todos freqüentavam e que guardava a memória local inclusive dos melhores bêbados, ou dizendo que seus avós já moravam naquela mesma rua desde sempre etc etc etc.
Bem, a única solução, pensaram os integrantes da comissão, seria o estabelecimento de um critério a partir das normas apresentadas pela voz do povo. Do ponto de vista democrático, não havia dúvida: todos estavam com a razão. O que mostrava que a teoria museológica era a mais lídima representante dos anseios de todo mundo: mesmo o conceito de tradição já indicava o caminho que eles proporiam, afinal, diziam, se todas as tradições têm o mesmo valor, não é um absurdo pensar que uma coisa é mais importante só porque existe há mais tempo? E um deles se lembrava de que havia alguns meses um amigo seu passara a realizar churrascos quinzenais. Perguntando aos outros se esta tradição seria mais digna se os churrascos acontecessem há quinhentos anos, ele mesmo concluiu que não, até porque ninguém poderia garantir se os novos churrascos continuariam acontecendo nos próximos quinhentos anos.
Se tudo o que existia tinha direito à memória, então a única solução possível era que o mundo (mas eles explicavam, “mundo” como tudo o que corresponder aproximadamente à nossa idéia de “edificação”, o resto seria patrimônio natural, problema para outra comissão...) o mundo todo virasse museu. A partir de então, proprietários ou locatários de qualquer tipo de imóvel passariam a ser nomeados “curadores”. Nas lojas e bares os usuários seriam vistos como colaboradores e cogestores da memória. Mas as pessoas não precisavam se preocupar, avisava a comissão, porque o objetivo do novo museu era manter viva a lembrança, abandonando o aspecto de túmulos dos velhos museus das múmias aristocráticas, por isso as pessoas (ou curadores de acordo com a terminologia adotada) seriam
obrigadas a agir como se
nada tivesse acontecido, apenas mantendo seu cotidiano – este talvez apenas interrompido por uma esporádica visita de algum grupo escolar.
Mas com um detalhe. Para que o trabalho dos curadores fosse bem feito, todos teriam que fazer um relato minucioso sobre todas as suas atividades na última semana, porque tudo era digno do sagrado direito da memória. Sendo o tempo um cruzamento de diversas camadas, culturais, materiais, simbólicas etc, um gesto, uma palavra, um tipo de alimento, tudo tinha o seu regime de historicidade, daí a necessidade de narrativas minuciosas. Logo, ao relatarem sua humilde semana os incautos estariam de fato fazendo uma narrativa histórica, a voz do povo é a voz de clio. A partir disso, qualquer mudança (esta, ressaltavam, não era proibida) teria que ser embasada nos relatos deixados (que seguiriam como padrões para as novas gerações que surgiriam, dividindo-se entre as seguintes idades: bebê, criancinha – estes infantes ainda analfabetos eram mais um problema, pois não tinham relatos em que se reconhecer, por isso acabaram sendo nomeados o “público-alvo dos museus”, e não mais “curadores” – criança alfabetizada, adolescente, jovem, adulto, idoso. O sistema era mais complexo, porque ainda existiam as profissões possíveis e o estado civil mas estou com preguiça). Como dizíamos, qualquer mudança no cotidiano teria que ser justificada pelo curador, levando-se em consideração argumentos estritamente historiográficos. Por exemplo: se uma lâmpada queimasse, e se por acidente isso não tivesse acontecido na Grande Semana dos Relatos, como ficou conhecida a Festa da Memória Coletiva Individual e Absoluta, o curador teria que provar que em sua região o costume local era trocar a lâmpada sempre que esta queimasse – o caso contrário também valia, caso alguém tivesse relatado ter trocado uma lâmpada e na semana seguinte nenhuma precisasse ser trocada...
A idéia foi posta em prática, mas levou o mundo ao colapso em poucas semanas. Algumas pessoas, desorientadas, optaram pela incúria burocrática, deixando tudo se degradar, outros fugiram de casa, passando a viver como vagabundos, salteadores, maltrapilhos sem memória. Uma coisa tipo assim Mad Max.