Este aqui já tem uns anos. É sobre a cidade de Franca
+ leitura das cartas do Maquiavel.
1.
O dia esmigalha a noite
a noite retalha o dia
num vapor perfuro-cortante
insones olhos de areia,
lunaquáticos sob a névoa,
saindo pra dentro do lado de cá,
enquanto o criador de galinhas
parece vergar sob o peso da mala
como se mãos saídas de alguma caverna
algum poço de escuridão e palavras
e notas de rodapé e citações entretecidas
puxassem a mala ao chão,
como se a sombra, o pó e o nada
que preenchiam a mala
quisessem morrer, numa espiral
sangrar por ali mesmo
sobre o asfalto ou o chão com cheiro de flores químicas:
“papel sobre papel pesa mais do que pedra
mais do que chumbo
e não é por causa das palavras, que são etéreas,
mesmo as mais piegas,
é a matéria-prima vegetal,
sua capacidade de se espalhar no espaço,
de tomar tudo de assalto;
não é o saber que torna grave
o coração do pensador
é a brutal gravidade das coisas:
não são sem sentido os pesadelos de velhos bibliotecários
morrendo soterrados em livros
que despencaram das estantes”
matuta aquele que bem gostaria
de ser um mero criador de galinhas
enquanto conversa com o porteiro do hotel,
conversas simples e bucólicas
sobre um filho viciado, outro advogado,
a família de médicos e dentistas:
“Que a morte caia sobre todas as múmias egípcias!
E a professora maldita que me fez decorar
a lista dos malditos presidentes desta Merdepública!”
Como é bom falar com o povo simples,
saído das neo-pastorais policialescas puritano-paulistas,
embora este,
diz pra si mesmo o criador de galinhas,
não passe do figurante de cocheiro no Banquete dos Canalhocratas.
2.
Uma mula
Mais a mala
Uma roupa de veludo
E uma faca catalã
Um sobretudo
Mas sobretudo um porém,
esta cidade detona o meu desejo:
em cada esquina um príncipe maquiavélico
de cabelo nem preto nem branco, mas cinza turvo,
com pulgas passeando sobre a calvície evidente,
e no meio da testa uma cicatriz vermelha,
(marca visível dos proscritos enforcados nos postes públicos)
os olhos úmidos, de tamanhos diferentes,
o nariz protuberante, cheio de muco,
a boca torta como a de um tirano qualquer,
Um Lorenzo de Garrastazu Medici Vargas da Silva Bush,
de queixo pontudo e curvo,
acusando-me da conspiração
de que sou vítima
entregando-me a brutal carcereiro
intitulado macunaíma.
- Bom mesmo era criar galinhas...
Suspiro com saudade ao porteiro do hotel.
Mas de noite, fechado em meu quarto sujo,
quando abro minha mala
ela ganha a leveza de pássaros brancos
folhas de papel ao vento
munidas de telescópios pra imaginação,
cheias de vozes de antigos incendiários mortos,
pássaros conspiradores, sabotadores, bêbados,
exilados,
malditos como um príncipe esquecido num pedaço de papel.
Um comentário:
Estes poemas parecem espirais, rodando sobre si mesmos. Tvz por isso é que goste. Cortaria, apesar, muitos adjetivos (não é o clichê de que o substantivo ou contém a idéia ounão vale a pena, a coisa da "secura" - cabralina/concretista- da linguagem, é tvz a sensação de, em alguns casos, excesso mesmo, e desnecessário).
Sobre o peso do papel, ou da palavra, superior ao da pedra, é um fato. Quantos arquitetos da época de Shakespeare tem a mesma ressonância que ele, ou Marlowe? Idem Camões, idem Pessoa, ad infinitum. A palavra reverbera a carne, a pedra não.
Abraço!
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