12/08/2008

Não devemos reabrir velhas feridas

“Não devemos reabrir velhas feridas”[1]

1. A Universidade de Brasília tem dois monumentos horríveis: um em homenagem a John Lennon e outro em memória de Honestino Guimarães. Honestino é lembrado por ainda ser o único desaparecido político que estudou na UnB.

2. Há uns dez anos atrás, eu e alguns colegas estudantes da UnB gravamos uma entrevista com a mãe de Honestino, dona Maria Rosa. Na entrevista, ela nos falou sobre a mudança da família de Taberaí para Brasília, quando a cidade ainda estava em construção. Falou com orgulho do filho estudioso e promissor. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, dona Maria Rosa ainda parecia se surpreender com a invasão da universidade por forças militares, em 1968. E já parecia cansada quando chegou a hora de nos contar a história da morte de seu marido num acidente de carro, quando Honestino já era um foragido. O enterro do pai de Honestino se converteu numa emboscada, o cemitério foi cercado por militares, mas o então jovem presidente da UNE conseguiu assistir à cerimônia e escapar ileso. Eu, numa demonstração de insensibilidade e inquietação justiceira, sugeri que a morte do pai de Honestino podia não ter sido casual. Dona Maria Rosa disse que achava impossível, mas com gestos que na verdade significavam não quero pensar nisso, tudo seria ainda mais absurdo. Fiquei envergonhado e resolvi não fazer mais comentários imbecis.

3. Minha família também saiu de Taberaí para Brasília. De fato, as duas famílias se mudaram juntas, a de dona Maria Rosa e a de Orayde, minha avó. Minha mãe conta que o meu avô quebrou algumas taças de cristal no chão da nova casa, na W3 Sul, porque esse ritual garantiria a felicidade dos recém-chegados.

4. Honestino era apaixonado por uma tia minha. Ela se casou com um latifundiário de Formosa. Minha mãe também fala sobre a visita que fez a Honestino na cadeia, numa de suas primeiras prisões. Ele estava com o corpo todo engessado por causa dos espancamentos. Quando eu era mais novo eu achava que ela era covarde, por ter visto a situação e nunca se envolver com política. Mas hoje eu conheço a minha covardia. Além disso, é fácil me imaginar um guerrilheiro de um passado para mim quase imaginário. E, principalmente, não sou nada pragmático. Estou mais para um zero à esquerda.

5. Outra história sobre Honestino, esta contada por meu pai. Mas, para entendê-la, é importante pensar numa universidade pequena, no meio de uma cidade em construção. E se ver na situação em que, num lugar com poucos estudantes, um colega simplesmente desaparece. Desaparecer podendo ser tanto uma hipérbole como um eufemismo. Morrer além da morte ou estar por aí, quase vivo como um zumbi. Pois bem, os estudantes de medicina se reuniram para decidir sobre uma greve em solidariedade a Honestino. A esmagadora maioira votou contra, sob o argumento de que isso atrapalharia sua vida profissional. Fico em dúvida entre duas alternativas: os piores sobreviveram, até mesmo os piores sempre sobrevivem; ou, numa saída à la Brecht, é mesmo lamentável um país que precisa de heróis.

6. Na entrevista, dona Maria Rosa e nós agíamos como se o Honestino tivesse sido o único torturado. Ela tinha motivos fortes para pensar assim, mas a gente não. Algum tempo depois, ela publicou um livro sobre a história do filho, com o mesmo teor. No livro, dona Maria Rosa conta que logo após o desaparecimento de Honestino, ela iniciou uma peregrinação em sua procura. Até que finalmente conseguiu o direito de visitar o filho no natal, na suposição de que ele estava preso em Brasília. O General Comandante do Primeiro Exécito concedeu o privilégio, depois de verificar uma série de documentos. Dona Maria Rosa ainda teve o direito de levar outros familiares, comidas e roupas para a ceia de natal. No momento da visita, porém, todos foram chamados, um por um, menos eles, os parentes de Honestino. Então, o oficial deu uma olhada nos papéis e verificou o erro. Honestino não estava lá.

7. Isso tudo tem a ver com despersonalização, destruição pela via do absurdo, aniquilação da vontade. É uma falta de sentido construída tecnicamente, com o auxílio de psicólogos.

8. Honestino gostava de poesia. Numa de suas cartas ao pai, publicadas no livro de dona Maria Rosa, ele copiou aquele poema do Drummond, “a injustiça não se resolve / à sombra do mundo errado / murmuraste um protesto tímido / mas virão outros”. Em outra carta, já na clandestinidade, ele cita o Torquato Neto “não era um anjo torto / era um anjo muito louco / com asas de avião.” Alguns anos mais tarde, dona Maria Rosa reencontraria seu filho, numa experiência espiritual. Guiada por doze espíritos orientais vestidos com túnicas brancas, ela chegou à cela em que jazia o espírito desencarnado de Honestino. Nas palavras de dona Maria Rosa, os guias teriam ordenado: “- Faça com ele o mesmo que fez com os demais. E assim procedi, pois tinha consciência de que se não o fizesse, eu poderia prejudicá-lo e você perderia a oportunidade do socorro. Dei-lhe o passe e você despertou, como se acordasse de um sono profundo, porém natural. Abriu seus olhos e voltei-me, sorriu e me abraçou, deitando sua cabeça no meu ombro – gesto natural seu. Parecia que estava acordando depois de uma longa noite de sono; anulara-se, finalmente, o grande espaço de dor e de terror.”



[1] Trecho de uma nota expedida pela Comunicação Social do Exército.

2 comentários:

Aldemar Norek disse...

São velhas, mas são feridas, sob cascas ou não. A elação entre memória, realidade e história tem a ver com o sentido (miragem) que falamos lá embaixo.
O problema do mundo é quando você não se reconhece nele. Covarde ou herói é pura circunstância em muitos casos.
abraços.

Aldemar Norek disse...
Este comentário foi removido pelo autor.