3/31/2008

nº 75




Tornar-se o próprio veneno, exposto
à corrosão do que lhe vai por dentro, lastro
ácido e atroz (se não fosse tão inadequado
e antigo como um bolero antigo
este adjetivo que o ouvido recolheu
de algum vinil, entre os riscos) que lhe atravessa
os vasos e se oferece ao ar, cercando
seu corpo como um pensamento, ou
o desenhar de um gesto, ou um
cheiro que não se reconhece - “crimes
contra a inocência não prescrevem,
devia-se saber” – mas que a ninguém
aturde como a si mesmo, nem que
se quebrassem todos os pratos, todas
as janelas e arrebentasse as portas antes
de sair, como se fosse possível sair
deste vagar pelo seu circo particular
de horrores, nem mesmo assim desmancharia
o espanto, e na seqüência tomaria
mais um gole disso que é você
e depois outro e mais um e
ainda outro e outro antes
do fim.
(das "Notas Marginais")

3/29/2008

Este mundo é um museu (Uma coisa tipo assim Mad Max)

A história começa com a comissão de especialistas chamada pra resolver de uma vez por todas os embaraços da prática museológica, porque os gestores do patrimônio tinham notado que a prática já não acompanhava satisfatoriamente as seguintes conquistas teóricas: 1. o direito à memória é sagrado. 2. a preservação da memória é um dever da sociedade. 3. numa sociedade democrática todos têm o mesmo direito de participar da gestão da memória e da tradição. Isso colocava em xeque a noção do público passivo, babando diante de lustres de cristal de grandes figurões da alta sociedade morta.

A comissão concluiu, depois de um árduo trabalho reflexivo, que só havia uma solução para os museus, e que esta teria que ser extrema.

Seus integrantes começaram pensando que seria bom ouvir as pessoas interessadas na questão, ou seja, a população todinha. Como este trabalho seria incompatível com a duração de suas vidas, optaram por escolher uma rua de um bairro de qualquer cidade do país, o que fizeram por meio de um complexo sistema de sorteio, aplicando as normas ultra-democráticas da democracia grega. Indo à rua sorteada, os integrantes da comissão queriam que as pessoas dissessem o que elas achavam digno de ser museificado. O embaraço da comissão foi crescendo ao perceber que cada pessoa queria puxar a sardinha pro seu lado, dizendo que sua casa sim era fundamental, ou porque ela ajudava os mendigos da região, portanto seus objetos pessoais deviam ser preservados em formol, ou porque ela era dona do bar que todos freqüentavam e que guardava a memória local inclusive dos melhores bêbados, ou dizendo que seus avós já moravam naquela mesma rua desde sempre etc etc etc.

Bem, a única solução, pensaram os integrantes da comissão, seria o estabelecimento de um critério a partir das normas apresentadas pela voz do povo. Do ponto de vista democrático, não havia dúvida: todos estavam com a razão. O que mostrava que a teoria museológica era a mais lídima representante dos anseios de todo mundo: mesmo o conceito de tradição já indicava o caminho que eles proporiam, afinal, diziam, se todas as tradições têm o mesmo valor, não é um absurdo pensar que uma coisa é mais importante só porque existe há mais tempo? E um deles se lembrava de que havia alguns meses um amigo seu passara a realizar churrascos quinzenais. Perguntando aos outros se esta tradição seria mais digna se os churrascos acontecessem há quinhentos anos, ele mesmo concluiu que não, até porque ninguém poderia garantir se os novos churrascos continuariam acontecendo nos próximos quinhentos anos.

Se tudo o que existia tinha direito à memória, então a única solução possível era que o mundo (mas eles explicavam, “mundo” como tudo o que corresponder aproximadamente à nossa idéia de “edificação”, o resto seria patrimônio natural, problema para outra comissão...) o mundo todo virasse museu. A partir de então, proprietários ou locatários de qualquer tipo de imóvel passariam a ser nomeados “curadores”. Nas lojas e bares os usuários seriam vistos como colaboradores e cogestores da memória. Mas as pessoas não precisavam se preocupar, avisava a comissão, porque o objetivo do novo museu era manter viva a lembrança, abandonando o aspecto de túmulos dos velhos museus das múmias aristocráticas, por isso as pessoas (ou curadores de acordo com a terminologia adotada) seriam obrigadas a agir como se nada tivesse acontecido, apenas mantendo seu cotidiano – este talvez apenas interrompido por uma esporádica visita de algum grupo escolar.

Mas com um detalhe. Para que o trabalho dos curadores fosse bem feito, todos teriam que fazer um relato minucioso sobre todas as suas atividades na última semana, porque tudo era digno do sagrado direito da memória. Sendo o tempo um cruzamento de diversas camadas, culturais, materiais, simbólicas etc, um gesto, uma palavra, um tipo de alimento, tudo tinha o seu regime de historicidade, daí a necessidade de narrativas minuciosas. Logo, ao relatarem sua humilde semana os incautos estariam de fato fazendo uma narrativa histórica, a voz do povo é a voz de clio. A partir disso, qualquer mudança (esta, ressaltavam, não era proibida) teria que ser embasada nos relatos deixados (que seguiriam como padrões para as novas gerações que surgiriam, dividindo-se entre as seguintes idades: bebê, criancinha – estes infantes ainda analfabetos eram mais um problema, pois não tinham relatos em que se reconhecer, por isso acabaram sendo nomeados o “público-alvo dos museus”, e não mais “curadores” – criança alfabetizada, adolescente, jovem, adulto, idoso. O sistema era mais complexo, porque ainda existiam as profissões possíveis e o estado civil mas estou com preguiça). Como dizíamos, qualquer mudança no cotidiano teria que ser justificada pelo curador, levando-se em consideração argumentos estritamente historiográficos. Por exemplo: se uma lâmpada queimasse, e se por acidente isso não tivesse acontecido na Grande Semana dos Relatos, como ficou conhecida a Festa da Memória Coletiva Individual e Absoluta, o curador teria que provar que em sua região o costume local era trocar a lâmpada sempre que esta queimasse – o caso contrário também valia, caso alguém tivesse relatado ter trocado uma lâmpada e na semana seguinte nenhuma precisasse ser trocada...

A idéia foi posta em prática, mas levou o mundo ao colapso em poucas semanas. Algumas pessoas, desorientadas, optaram pela incúria burocrática, deixando tudo se degradar, outros fugiram de casa, passando a viver como vagabundos, salteadores, maltrapilhos sem memória. Uma coisa tipo assim Mad Max.

3/24/2008

As muitas camadas da história

É um livro embolorado, um veneno que entra pelo nariz e te metamorfoseia num sapo peçonhento.

Napoleão, o pequeno, o infame, o Rei da Farsa e sua sociedade de jogadores, gigolôs e editores entra pela porta dos fundos de um livro de Marx, a pontapés, e esmagará o poeta que morre sob a barricada, abraçado à carniça que refletia a imagem da musa tuberculosa. Como de cada causa se segue um efeito, o poeta enterraria a felicidade sugerindo a você que esmurre mendigos.
Em outro canto, Dostoievski lê o relato dos desejos Imperiais de Napoleão III e escreverá uma coisa que, com mais velocidade do que o seu misticismo de bêbado, caiu no Eldorado onde se encarcerava o poeta antitropicalista, como veremos adiante. Mas antes, são as idas e vindas do tempo que adianto a você leitor, sob o manto de Napoleão III Dostoievski pensa na consciência de um pequeno assassino e o livro, agora sim, devidamente editado pela União Soviética em plena fase gulaguista, viria a ser traduzido para os brasileiros pelo Puxa-Saco da Consciência Nacional, o Intérprete das Frases Sibilinas do Chefe de Governo (p. ex. “a história sempre muda”) que terá negado para si mesmo qualquer semelhança com Napoleão III ou Tibério, o déspota ressentido que brutalizava menininhos em cavernas. O tradutor em questão, Rosário Fusco, depois do Estado Novo cai em desgraça e se tornará um bêbado marginal autor de histórias fantásticas que parodiaram a noção jurídica de responsabilidade. Dostoievski não mandou dar porrada em mendigos, mas ensinará a cuspir no palácio de cristal.

Sobre o tema bebedeira e marginalidade muita coisa ainda poderia ser escrita em apêndice: Torquato Neto e o anjo torto citado na carta de Honestino Guimarães à sua mãe, a garrafa de vinho ainda guardada, a promessa de que o filho estaria vivo pra comemorar o Natal e o sumiço definitivo descoberto depois de muitas expectativas (para as autoridades, ele estava morto há tempos). Isso nos levaria de volta ao tema do mesmerismo, do magnetismo mental, da revolução e de seus herdeiros degenerados em Tiranos e paródias de Tiranos. Do mesmerismo chegaremos a Paulo Coelho, que enfim prefacia o romance de Rosário Fusco. Com Paulo Coelho, seria o fim da linha, a partir daí um grupo de meninos arrogantes e detestados pelos colegas da escola repetiram “Paulo Pentelho”, “Amebas Flutuantes”, escrevendo no quadro-negro Alunos de todo o mundo, fodam-se.

3/21/2008

nº 73

Certas tardes de verão (ou seria
daquele tipo de inverno onde o sol
ainda se esmera em grafar na pele
flores rubras com sua luz de agulhas
todas em brasa e imateriais) banidas
agora para um limbo que tantos
nomeiam (pelo mecanismo falso
dos sentidos) de passado, limbo
que concentra, entre outros, o instante
em que talvez confuso (talvez
indiferente) você percorria a orla
do primeiro verso logo acima, e que é
um território raso em que tudo
se desfaz e se confunde e nunca
mais retorna (o que lhe deu prazer
ou paz ou a mais intensa dor ou
desespero), mesmo que em
seu mundo imaginário, você
projete seu corpo imerso
num rio sem fluxo onde
as águas estanques apodrecem
o seu melhor sorriso, o seu mais
claro gesto, o seu maior ardor
e, claro, de todas a mais infundada
(como de resto cabe a qualquer
formulação) fé, cicatriz
da esperança.

3/18/2008

Oito-Olhos é o Cara na Província Literária (ou: um Tirano em cada esquina)

Na caverna em que Eco hiberna, o Cara se lamenta:

- Eu sou o tal do hospital
autêntica luna dolorida da coluna cervical
o menos sal no menu do serviçal
urtiga que me mastiga e que te castiga
ordem dos cães tricéfalos que te mordem
oito culos nos óculos mais a ótica neurótica
tiro no escuro, Eu, o Cara escancaro teu fado safado
destino sem tino rumo sem humo surpresa presa
sou o que existe quando desiste o anus do tiranus o dente do presidente.
a primeira a útlima palavra do cosmo da cidade da casa da calçada
o ai do pai vingador o guru do sapo cururu
o varal visceral o mito do vômito!



Menos artificioso, mais prosaico, o Cara na mesa de bar:

- burguês sim! mas só na hora de andar no pedalinho, veja lá...
pô, Kronenbier?



bebericador de cavalos-marinhos
etiqueta da gravata borboleta
terno saguão do megastore livreiro
sorriso reluzente de talheres
olhar oblíquo de lagosta

- vou fazer então aquela cara de crítico
cultural não, de costumes e moralidade,
ai que saudade da Amélia!



o Cara sonha estar postado
na portaria do castelo tijolinho azul
(chão de areia, aroma de mijo):

- um Ego dois Egos três Egos
não Euzinho aqui, Euzinho apenas Super
visiono

entra não entra - entra não entra
Maiores Menores – Maiores Menores



Desenha um círculo no espelho
na altura da virilha
e comendo-se a si mesmo acena

- Muchas gracias thank you agradado
You’re welcome
Nada como eu comigo mesmo

Ainda me caso com esta máquina de xérox.

3/14/2008

nº 74




É outra
a luz que fere cada mínimo espinhaço da água
nas ondulações de um mar que implode
sua fúria sobre si mesmo, para dentro,
em convulsões que se enrolam
como se num eixo, é outra
a brisa e outra a mansidão nesta outra
tarde em que você ainda retorna tarde
para onde seus pés não lhe deveriam agora ter levado, ou
antes para onde nunca deviam ter ido, como
se alçassem as cordas do destino por
uma grua de engrenagens secas e assim
ele permanecesse, sem acessos, caixa
suspensa de etiquetas
mínimas e ilegíveis pela distância até o pavimento
imóvel onde seus pés afundam sem que
Oriente algum (ou Éfeso) lhe
redimissem a espera em torno de uma dor
que circunscreve sua pele em espirais
e espirais até a perda
de qualquer espanto
ou maravilha.



3/13/2008

Aproximação a Creeley

Consumar
o inconsumado, daí fazer
o infindável. Labor,
labor, labor.

Seis dias por semana você labora
no sétimo elabora um pensamento.

‘Ana passa os tomates’ se torna
divisão entre sujeito & objeto.

Labor, labor, labor.
Você mesmo pode pegá-los.

Pensar é processo de labor,
Alegria é fruto de labor.

3/10/2008

nº 71

(Voulez-vous danser? de Fabian Fornarolli, 2004)



Abrir janelas na página, sucessivas,
em cascata e surfar de uma para outra até
recolher as migalhas de sentido espalhadas
na superfície das coisas.
A ficção do cético é o abismo, ele
é uma cama doce, como para o místico
o pavor e o êxtase envolvem a alma e o corpo em curvas difusas
de embriaguez contínua. O passado reduzido
a arabescos vertidos
sobre uma seda que nunca se esgarça
e nem acaba, nem mesmo quando
os calígrafos enlouquecem e aferram suas penas
sobre a trama de fibras como se transferissem
para o objeto o foco
e não à sua mão que ainda dirige a tinta
sobre a tela, a sua luz, a sua
escuridão, o seu calor, a sua
urgência.
(das "Notas Marginais")

3/04/2008

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Sentido (s.m.)
Uma das principais questões de qualquer tempo ou lugar resume-se à antinomia: a vida faz algum sentido x a vida não faz sentido algum. É notável que a diferença entre as duas frases aparentemente tão opostas, quanto à sua construção, é insignificante: um deslocamento do pronome indefinido do meio para o final e a inserção de um advérbio de negação. Apenas isto; ou seja, estamos diante de uma nuance, uma sutileza, um limite frágil, líquido, nevoento. Não é difícil imaginar o olhar de idiota de um homo erectus qualquer, lá no Pleistoceno, cerca de um milhão e meio de anos atrás, tremendo de pavor após ter milagrosamente escapado de morrer nas garras de um tigre-dente-de-sabre, sorte que não teria sido compartilhada por um companheiro seu de jornada. Não temos mais tigres-dentes-de-sabre, é verdade, mas em matéria de garras o universo sofisticou-se muito, chegando à imaterialidade. O filósofo Jerônimo Aguaforte, autor de “O Destino vomitou em mim mas já enfiei também o dedo na garganta” postula que mesmo o caos e a entropia são elaborações humanas para encontrar conforto intelectual nomeando uma desordem e um absurdo tão absolutos que transcendem todos os estreitos limites do que se convencionou chamar de 'pensamento'. Sequer Breton e a escrita automática, os Dada e outros partidários do anti-sentido conseguiram penetrar em seu cerne. Mesmo a filosofia e a literatura, quando tentam o que se chama de “produzir sentido” não fazem mais do que negar a prévia existência deste, e geralmente produzem apenas ficção. Da ruim.

América no sal

diz aí
Cassandra Anenberg!


“Evaristo,

Que tal

A salada

De bacalhau?”

3/03/2008

Isso é banal
Mas não sei por que você morreu
Tão jovem. Não sei por que
Você tão logo,

Logo você.

Depois você me visita
Em sonhos (logo eu que um dia
Gostaria de ter sido um visionário, quando criança
Sonhava ser o exorcista
E hoje me exercito adivinhando
Qual música vai rolar no shuffle)

E você sugere as músicas mais in-
justas. The Writ,
Pra quem morreu em Miami:
A Escrita, pois é, somos

insigneficantes,

E não era eu, meu irmão
Que dizia ser filho do diabo
E colecionava crânios de vacas e cachorros
E todo mundo ouvia os porcos da guerra
E a família chorava como se o menino
Jesus repousasse num presépio
De maconha e a letra também diz
Que os mortos não
Sabem, os mortos não
Dizem, não procurem
Os mortos, e você
Achou graça quando eu disse
Que o Ozzy é a Maria Bethânia dos ingleses

E o que eu queria no momento era algo assim,
Uma explicação ingênua e gratuita.

3/02/2008

Juiz de Fora, 1982

(parque Halfeld, JF)


tem feito frio todas as manhãs
e a cidade está cheia de estudantes
nas tardes em que não chove
ficamos pelas praças
caçando passarinhos da memória
e invejando as flores nos jardins
solitárias belas
dignamente imóveis
enquanto nossa procura se define
na aventura na busca desesperada
de nós mesmos

(notícias daí não chegam)
se o tempo andar obscuro
por favor
venha lamber meus olhos todas as horas frias
não diga que não faz mal
tanta distância
mas se o sol brilhar de vez em quando
telefone e diga frases sem sentido
vou deixar meus sonhos sobre a mesa
e ler pra você as principais notícias
dos periódicos locais
o horóscopo o boletim meteorológico
a coluna social
apararei meus cabelos e de noite
vou procurar amor nos quartos de hotel vizinhos

---extensa noite
plana e plana
é tão duro ter essa chama
aqui dentro nos consumindo
se na varanda deste hotel
a precisão do tempo
nos massacra


(19.4.1982)