8/10/2010

APONTAMENTOS PARA UMA POÉTICA NEOROCOCÓ

de Lalo Smazenka Svoboda
(tradução de Aldemar Norek)


Artigo 1º
O discurso indireto livre e o voto nulo são os pressupostos máximos onde se funda o Neorococó e todas as suas subcorrentes (em oposição ao voto indireto e ao discurso nulo).

Artigo 2º
Nunca mencionar animais estranhos à fauna local, como rinocerontes, leopardos e especialmente hipopótamos – eles consomem cerca de 40 kg./dia de alimentos, o que afetaria sobremaneira a economia do poema.
Parágrafo único
Esta regra deixa de ser válida para os poetas do continente africano, para os que por misteriosas contingências residam em zoológicos ou para os mais abastados e que tenham como diversão viagens ao habitat destes animais (contudo, safáris e outras práticas violentas são ecologicamente condenáveis), tendo vivido a experiência direta e sobrevivido.

Artigo 3º
O mesmo se aplica à microflora (algas, liquens, etc.) e elementos subterrâneos da flora (rizomas, etc.). Nestes casos serão feitas breves concessões, e biólogos ou botânicos ficariam isentos de observar com rigidez este preceito, que no fundo não passa de um exagero programático. Ávidos leitores de Deleuze (os que possuírem como comprovante nota fiscal discriminada, ou declaração de biblioteca pública, com autenticação oficial) ficam dispensados deste artigo, ainda que nos encham, em sua grande maioria, o saco.

Parágrafo único
Na verdade qualquer pessoa que mantenha prática ligada à terra ou flora aquática fica também isenta, porque exigir diploma iria contra nossas crenças anarquistas.

Artigo 4º
Cientificismos e alguns discursos (ou não-discursos, para deixar suficientemente clara nossa postura inclusiva) onde não se encontre a fala, a música e a incoerência da fala, mesmo que fragmentada, devem ser banidos do poema.
Parágrafo único
Em decorrência desta premissa, silogismos passam a ser aceitos.

Artigo 5º
A fala (sempre tensa) é o arabesco - ou espiral - onde o Neorococó borda sua trama infinitesimal e pluridimensional. Pontuada pelo Silêncio. Por vezes o Silêncio deve ser maior que o poema.
Parágrafo único
Quanto menor o poeta maior deve ser o Silêncio.

Artigo 6º
Todo poder emana do corpo e em nome dele deve ser exercido. Que o álcool seja livre e todas as bocas úmidas e macias. Não há salvação fora dos cabarés. Talvez não haja salvação, porque os cabarés estão se acabando e tudo está virando um enorme puteiro ( mas lembre-se: se beber não dirija; se dirigir, foda-se).

Artigo 7º
Eventos simultâneos, paralelismos e sincronicidades podem ou não ser evidência do mundo espiritual. O mesmo se aplica a OVNI’s e à Teoria das Cordas, universos paralelos, etc. Os poetas que desejarem muito fundar uma igrejinha ficam livres para tal empresa, principalmente aqueles que perderam a certeza de que só a poesia salva – e de que não existe poesia sem liberdade e independência.
Parágrafo 1º
As igrejinhas, apesar de livre criação (ainda pelo caráter anárquico que proíbe proibir), não são lá muito desejáveis. Seus membros em geral são uns chatos de carteirinha.
Parágrafo 2º
Os orixás da poesia não têm corpo. Mas não se sabe ao certo a que ponto alma e corpo são de fato separados.

Artigo 8º
Não levar em consideração eventuais boatos demeritórios sobre o que eu possa ter pronunciado acerca de Eros e do efeito do álcool, ou da combinação dos dois – a vida não passa de uma alternância entre o porre e a ressaca e o Silêncio será o meu legado maior (conforme o Artigo 5º parágrafo único)

Artigo 9º
Se eu fosse cristão, poderia afirmar que o Eclesiastes é o livro mais interessante, intrigante e belo da Bíblia, mas como pagão me interessa mais o Cântico dos Cânticos, recitável em qualquer cabaré ou qualquer cama, antes ou depois. Depois é mais propício.
Parágrafo 1º
Danças dervixes e sufis, bem como seus correlatos (zen, etc.) serão práticas desejáveis, inclusive por remeterem ao arabesco e à espiral. Poetas que sofrem crises de labirinto devem consumir com moderação.
Parágrafo 2º
Os preceitos aludidos, por suas características místicas, não excluem práticas milenarmente estabelecidas nos Kama Sutra, sempre e mais desejáveis.

Artigo 10º
(o décimo não terá conteúdo para que isto aqui não se converta em decálogo, ícone de práticas pouco libertárias ao longo da História, e em todos os povos)

Artigo 11º
Como a regra acima, involuntariamente, perfaz um decálogo, e como somos contra toda e qualquer regra (que sempre acabam por ser instrumentos em mãos erradas) resolvemos escrever esta última, de número 11 (onze). Este número, por ser primo, só é divisível por si mesmo e pela Unidade e, como a serpente mitológica a morder a própria cauda, dá conseqüência ao Eterno Retorno e ainda outras percepções – o seu duplo é o número das letras do alfabeto hebraico e das cartas do Tarô; o seu triplo, a idade de Cristo; todos os seus múltiplos por números naturais de um algarismo (exceto o zero, que remeteria à não-existência) resultam bifrontes e espelhados; quando divididos por 99 (noventa e nove) dão origem às dizimas periódicas 0,1111..., 0,2222..., 0,3333..., e sucessivamente, ou seja, números racionais de extração infinita (cf. espirais e arabescos). Para que finalidade isso pode servir no contexto da poesia neorococó (como de qualquer outra, contemporânea ou extemporânea) é muito difícil precisar, pela própria complexidade dos temas em tela, mas parece muito adequado a estes tempos pop-místicos. De qualquer forma somos contra as finalidades (ver Chuang-tzu e os 33 centímetros sob os pés).

Artigo 11 e 1/5º.
Escrever como um advogado da província passa a ser provisoriamente aceito no âmbito das atribuições do poeta, posto que os fins nem sempre justificam os meios, mas os explicam. Neste caso, ficam revogadas todas as disposições em contrário.
Parágrafo único
Ressalvadas as disposições do Parágrafo único do Artigo 5º.

Artigo 11 e 5/8º.
Relações muito óbvias e banalizantes como citar as vinte e duas cartas do Tarô (cf. Artigo 11º) ou relacioná-las com quaisquer aspectos do texto devem ser evitadas. O mesmo se aplica aos Oito Trigramas de Fu Xi (ou Fu Hsi) e outros ícones da sabedoria arcana.

Artigo 11 e 7/9º.

“A filosofia hoje me auxilia a viver indiferente assim”. (“Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela.”)

Artigo 11 e 10/11º.
Como a espiral que se dobra sobre si mesma, como o número impelido ao infinito imediatamente próximo (e ao mesmo tempo extremamente distante) segue se inclinando em direção ao próprio limite num precipício sem termo, assim a Poesia vai, ao arabesco do arabesco do arabesco do arabesco....

Artigo 11 e 10/23º.
Abaixo qualquer tipo de decálogo ou manifesto.

Nenhum comentário: