5/19/2012

Língua Epistolar

Procurando um texto meu por outros motivos, me lembrei do texto completo que sugeriu
o nome do blog:

Quando você era um deus: gestos, atitudes, o modo de andar e de olhar, indicavam as coisas em sua presença. Você não falava, não era necessário, pois tinha o dom da imortalidade das bestas-feras. Vivia sob o espanto constante das tempestades em cavernas e achava que todas as coisas estavam cheias de deuses.

Quando você era um herói: gigante brotado como semente da terra, guardava para si (excluindo disso as bestas-feras animalizadas no arado com os olhos voltados para o chão) o segredo das similitudes. Falava de um escudo com desenhos de cidades, pessoas e animais, navios e guerreiros, rios, desertos e oceanos, quando queria descrever sua cidade repleta de pessoas, animais, navios e guerreiros.

Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?




2 comentários:

Eliana Pougy disse...

Simplesmente amo o que você escreve. Uma sabedoria incrível, uma força nas palavras, nas conexões de sentido, uma coisa tão rara que me espanta. Como já te disse, te conhecer é uma honra enorme, imagina então escrever ao seu lado. Bjo enorme.

Aldemar Norek disse...

Esse seu texto agora me lembrou o Ranciére d'O Desentendimento, que li, vc sabe, muito depois, e acho que vc tbm:

"Identifica-se assim a racionalidade do diálogo com a relação de locutores que se dirigem um ao outro, no modo gramatical da primeira e da segunda pessoa, para confrontar seus interesses e sistemas de valores e testar sua validade. Toma-se facilmente demais como certo que isso constitua uma descrição exata das formas de logos político racional e que por isso seja deste modo que a justiça abre seu caminho nas relações sociais: pelo encontro de parceiros que, num mesmo movimento, entendem um enunciado,compreendem o ato que o fez enunciar e tomam a seu cargo a relação intersubjetiva que sustenta essa compreensão. Assim, a pragmática da linguagem em geral (as condições necessárias para que um enunciado faça sentido e efeito para quem o emite) forneceria o telos da troca razoável e justa.

Será que é assim que o logos circula nas relações sociais e nelas se efetua: nessa identidade da compreensão e da intercompreensão? [...] Concedamos que uma interlocução bem-sucedida antecipa, sempre, uma situação de palavra que ainda não é dada. Mas disto não se segue, de forma alguma, que o vetor dessa antecipação seja a identidade entre compreender e compreender. É, ao contrário, a distância entre as duas acepções de ‘compreender’ que institui a racionalidade da interlocução política e funda o tipo de ‘sucesso’ que lhe é próprio: não o acordo de parceiros sobre a repartição optimal das parcelas, mas a melhor manifestação da divisão. O uso corrente basta de fato para nos instruir sobre um fato de linguagem singular: as expressões que contêm o verbo ‘compreender’ contam entre as expressões que devem mais frequentemente ser interpretadas de maneira não literal, e mesmo, o mais das vezes, ser entendidas estritamente como antífrases. No uso social comum, uma expressão como “Você me compreendeu?” é uma falsa interrogação cujo conteúdo afirmativo é o seguinte: “Você não tem nada para compreender, você não precisa compreender”, e mesmo, eventualmente: “Você não tem condições de compreender. Você só tem que obedecer.” Assim, “Você me compreendeu” é uma expressão que nos diz que justamente “compreender” quer dizer duas coisas diferentes, senão opostas: compreender um problema e compreender uma ordem. Na lógica pragmática, o locutor é obrigado, para o sucesso de sua própria performance, a submetê-la a condições de validade que dependam da intercompreensão. Caso contrário, cai na ‘contradição performativa’, que arruína a força de seu enunciado. Ora, “Você me compreendeu?” é um performativo que zomba da ‘contradição performativa’, porque sua performance própria, sua maneira de se fazer compreender, é traçar a linha de demarcação entre dois sentidos da mesma palavra e duas categorias de seres falantes. Esse performativo dá a entender àqueles a quem se dirige que existem pessoas que compreendem os problemas e pessoas que devem compreender as ordens que os primeiros lhes dão. É um designador da divisão do sensível que opera, sem ter de conceitualizá-la, a distinção aristotélica entre os que têm apenas a aisthesis do logos e os que têm a hexis."