2/23/2007

Cenas de uma cidade qualquer 7

No começo foi mistura de curiosidade e medo. Um gato explorando o móvel novo no apartamento. O carro-família devagar na avenida. Carro prateado no sol insuportável. Faca sorrindo sobre a mesa da cozinha. Temperatura ambiente criando um vácuo ao redor da família feliz. Na cidade o gavião ainda sabe onde se esconder, a não ser quando é raptado e metido no quartinho de empregada. A força vital de milhares de corpos pulsando levam o carro adiante. A cidade espalha.
Depois, quando me aproximei, foi o pânico. Meu e da família, embora só se fale dela. A família repudia a violência, defende a cidade harmoniosa. O nome disso é instituição. Filósofos vão dizer do meu ato assassino que houve alguma falha na razão, que em mim o homem regride aos estágios incivilizados e só faz o que o corpo manda. Os primeiros seres vivos eram escravos do Medo. Muito frágeis, qualquer pontinha de luz ou calor para eles era o fim. Por isso se agarravam à vida compulsivamente, matando tudo. Psicanalistas dirão do meu caso que o medo é perturbação na via da pulsão de morte, herança ancestral das bactérias que sonham se tornar pedras, depois que Freud se desiludiu com o Ocidente. Serei enfim a aberração. No carro decepado, sem brilho perto do matagal, o showman perguntará o que no mundo deu errado em mim.
Daqui da janela agora assisto a passeata das crianças que pedem justiça. Justiçamento, vingança. A raiva dos vencedores alimenta a instituição. A guilhotina foi sinal de liberalidade, morte indolor. Esta janela aqui apresentada e o espaço amplo do meu quarto vêm a calhar porque jornais dizem que me enviaram a um hotel. Bárbaros não sabem economizar o freegobar. Não sei o que estou fazendo aqui, não sei se estou aqui. Meu nome é Gaúcho, estive na Ilha Grande em 1936. Um escritor achou muito natural que um macaco como eu me habituasse à cloaca: este lugar escuro, úmido, onde as pessoas se dissolvem numa pasta fedorenta, sempre teria sido meu habitat natural. Mas jura a criminologia: animais também cometem delitos. Existem felinos assassinos, que não matam somente para comer, mas por bestialidade. Em mim, a natureza fez uma curva. O carro-família é um direito sagrado. Cortei a foice todos os sonhos. Sou um enigma renegado.

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