2/03/2007

Um trecho*

Não sentia mais dor, agora. O travesti flutuava por sobre as luzes da cidade e sentia em seu nariz o ar molhado de sangue. Pensou em Paris, no avião, nela vestida em plumas. Nela de chapéu. Ela era Audrey Hephburn vestindo Dior, Marilyn Monroe cantando Diamonds are a girl´s best friends. Engoliu uma placa de sangue que voltou e escorreu pela boca. Estava sozinha, ali, no meio da rua, boiando em calor e vermelho. Não sentia as pernas. Sorriu, imaginando o palco e ela ouvia as palmas e os gritos e os assobios. Queria um abraço, agora. De qualquer um, de sua mãe, de seu pai, os desconhecidos que a puseram no mundo. Tentou se mover e tudo perdeu o foco. Fechou os olhos. Estava quebrada. Era um corpo inerte jogado no meio da rua fria. No meio da noite de São Paulo. Uma lágrima escorreu de seu olho. Seu queixo tremendo e ela pensou em canhões de luz e alguém gritando luzes, câmera, ação. Ela no centro da lente do cineasta europeu. Fellini, Pasolini, Hersog. Deus!, e a dor lancinante correu toda a sua coluna vertebral. Vomitou e engasgou com a gosma vermelha que entrou em seu nariz e o ar faltou e ela não conseguia parar de arregalar o olho e ouvir a sirene tocando e todo mundo correndo em volta dela, a velha de robe e bob na cabeça, o velho descabelado e com a barba por fazer, os meninos com cara de sono, o médico lindo vestido de branco, a enfermeira enfiando um negócio duro no seu nariz, alguém amarrando sua cabeça num troço gelado, ela sendo sacudida e colocada numa cama fria, o choro, o frio, o medo, a tremedeira, o som faltando, uma dor absurda, um frio, um frio, um frio, tão sozinha, um medo, cadê todo mundo, mãe, mãezinha, deus, meu anjo da guarda, aleluia, pai, um quase silêncio, uma paz, um cansaço, uma luz, um alívio. Acabou.


*este é um pequeno trecho de um livro que escrevi em 2003, acho. Tá aqui no PC, foi aprovado por uma editora, mas, sei lá, duvido de sua qualidade e não quis publicar. Quem quiser ler, é só pedir que eu mando.

3 comentários:

Masé Lemos disse...

eliana
vc já leu o André Sant'anna?

bjs

Eliana Pougy disse...

Sim, gosto muito do texto dele, mas às vezes me canso um pouco do tatibitati dele. Mas, considero que ele e o Joca Reiners Terron são os melhores desse grupo dos 90.

Masé Lemos disse...

pois é, este texto me lembrou o André....

beijos