Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
2/28/2008
o que você faria se não sentisse medo?
real e cheio de arestas (é só
olhar de perto e sem
formulações) cortantes,
lâminas intermináveis
na pista ondulada
em sobressaltos, e você,
enquanto desce
o tobogã de encontro
ao vazio, aproveita
a embriaguez do vento
em seus cabelos e
repara o curso
de cada mínimo
impulso da eletricidade
até o centro oculto, ali
onde o segredo pode
ser o não haver nada
no final da pista
descendente além
da vertigem, e não
adianta fechar
os olhos, viajante,
os dias (sem cor ou
vigorosos) ainda
passarão sem
observar a pele
sobre a íris ou
seu desejo de mudar
os quadros sucessivos
que escavam no corpo
outro desejo e assim,
num trânsito que aponta
o infinito, como se
as coisas não virassem
pó, você ainda
pode arremessar os olhos
novamente e retirar
do acaso alguma
coisa que se diga
flor e restitua
aos dias o prazer de outra
embriaguez, no transe
de todos os sentidos.
Coisas pra se ler depois do carnaval, 3. H G Wells. O Destino do Homem. Tradução de Almir Oito-Olhos de Andrade
Nada é certo em nosso destino. É possível que as grandes e imperfeitas sociedades dos nossos dias, perpetuamente em conflito, com o seu desenvolvimento rápido e sua organização maravilhosa, comparada com a de todas as outras sociedades animais, nunca cheguem a unificar-se. Talvez o homem se revele incapaz de se desembaraçar do superdesenvolvimento da guerra; talvez ele seja estorvado pelos imbecis, pelos egoístas, pelos broncos ou pela maioria estúpida, tímida e tradicionalista. O peso morto da população de nível inferior pode asfixiar as minorias construtoras, a elite pensante leitora de revistas semanais, o farol do mundo.
Ou então transformações climáticas imprevisíveis podem voltar-se subitamente contra o homem. Podem irromper epidemias estranhas, demasiado velozes e mortíferas. Nada nos assegura de que os ratos e os cães não se tornem novamente ferozes, ou que os gatos, as moscas e uma multidão de vermes errantes não façam, futuramente, investidas bruscas, amontoando-se e escondendo-se sob as ruínas de cidades decadentes. Cardumes de peixes podem um dia banquetear-se sobre os restos de náufragos dos derradeiros navios humanos.
Veja: os últimos homens, com os dentes corroídos, poderão se lançar ao mar, desesperadamente, quando os últimos livros também submergirem. Numa situação ainda mais tétrica, quem sabe, eles terão que escolher entre uma página contendo um soneto de Shakespeare e uma velha avarenta que morre afogada. Neste momento, as águas tornarão inúteis o oceano das citações, o entulho lamentável denominado "civilização" emergirá como fezes de baleias e nem mesmo Aristóteles poderá aconselhá-los sobre a decisão mais acertada: salvar a velha ou a Obra. Ambas serão repasto para silenciosas e insinuantes enguias, os animais mais estúpidos da Natureza."
2/26/2008
nº43
Fala como fala a água, fala
de dentro do corpo, do mais escuro que a sombra, paralelo
à vida, face
à face com o tempo, no limite, ali
onde nem a última fibra encosta
no outro, quando
o espanto que se assoma à alma deambula
e estabelece uma superação que não
se sabe para onde ou através de quê.
Como fala a água, como se fala quando se umedece
a palavra por um instante – mas depois
o vento sopra constante e tudo outra vez
seca.
(das "Notas Marginais")
2/23/2008
Outros Janeiros (modificado)
1.
O vapor subia dos paralelepípedos
Rumo à capital na ambulância
Com o velocímetro estragado
Sobre a estrada verde-enxofre –
O médico apenas queria
Ser curtido na novela com a família
Tudo menos
Receitar infecção urinária
2.
Na pracinha, sempre
Um jegue morria
Com nó nas tripas após comer um saco plástico brilhante.
Vestígios da passagem
da União Intergalática Revolucionária dos Estudantes
Pousadistas
3.
Na casa amarela
Varanda de tubos de PVC
O velho morria outro dia
A família apostava em mera indigestão
Causada por siris no lugar do enfarto
(Todo homem de bem
Deve andar armado)
4.
Na praça central, entre os carros produtores do barulho
Anunciando a alegria
Desesperada naquele sítio
Um casal se esfregava
Lambuzava no capô nupcial
Ai! quero despencar
Do céu
Diretinho nos teus
Braços (armies)
4.1 Ao consultor de desastres
A menina, indefesa lágrima
Caindo sobre os lábios pedia
Um conselho.
O ex-namorado tocava sua música de amor para a atuação pornomobilística na Outra.
O sábio da filosofia a golpes de martelo
De quebrar caranguejos
Quase vomitava-lhe o capeta
(era daquele tipo quente)
- Da próxima vez escolha uma canção melhor
E pare de quebrar estes espelhos,
No verão você caminha sem sapatos.
5.
O tema do colóquio era
Como driblar os 6 fantasmas do medo
Ou a herança
Dilapidada
Do Barão de Abadia
E sua fazenda jamais percorrida
Por qualquer alma viva
Ou porque é melhor
Tomar cerveja no canudinho
Ou como segurar
O poder na unha e não
Se perder, afinal, poetas da corte
O poder tem que falar
Ou porque, fazendo as contas
Tudo não deu em nada
Interrompido por revólver prateado
2/20/2008
Coisas pra se ler depois do Carnaval 2. HG Wells. A nossa vida mental. Na tradução de Almir Oito-Olhos de Andrade.
Fatos tais como a escrita automática, que desempenham tão importante papel nas pesquisas psíquicas, parecem ser unicamente fatos de dissociação mental, múltipla personalidade. Devem, portanto, ser analisados sob a mesma perspectiva com que tratamos o caso da moça B, virginal e afável, que se desdobrava nas personalidades B2 e B3, sensual e falastrona uma, infantil e asquerosa a outra. Algumas pessoas que têm o dom da escrita automática verificam obter os melhores resultados quando, depois de tomar um lápis na mão, concentram a atenção numa conversa fútil, outras anulam a vontade até quase caírem em transe. Um caso interessante dessa natureza verificou-se recentemente nos Estados Unidos. Um ativo corretor de fundos públicos, que quase abominava a literatura, ostentando ignorância, mas falsa e empostada (porque se soube que ele lia, e muito, às escondidas), e brutalidade, esta verdadeira, como motivos de júbilo pessoal
, manifestou veia poética nos momentos em que se achava no estado intermediário entre sonho e vigília. Seus versos eram tão bons que, enviados a uma revista literária, foram aceitos e publicados. Desde então, ele ganha algum dinheiro compondo poemas subconscientemente. Tais poemas são, indubitavelmente, produtos de um romantismo do tipo "mal-do-século", que havia sido recalcado pela vida de negócios."
2/17/2008
Coisas pra se ler depois do carnaval. 1. H. G. Wells. Como vivem e sentem os animais. Tradução de Almir Oito-Olhos de Andrade.
Outra transferência excêntrica de instintos, lembrando certos traços da conduta anormal dos
homens, observou-se num macho do faisão Argus, do Jardim Zoológico de Amsterdam. Como não havia disponível nenhuma fêmea de sua espécie, a ave se juntou a uma fêmea de espécie aparentada. Ora, no galanteio ordinário do faisão Argus, a fêmea costuma ficar parada, contemplando a exibição da plumagem do macho. Mas a fêmea dessa outra espécie, a que o faisão se associou, procedia diferentemente e se recusava aboslutamente a permanecer quieta. Cada vez, o macho ficava mais desencorajado. Agitava-se dentro da cela, exibia espetacularmente as asas e a cauda: mas, quando espiava por debaixo da asa, a fêmea já tinha se movido do lugar. Eventualmente ele desistia; mas a necessidade de exibir-se era tão imperiosa que ele perdoava a fêmea, exibindo-se diante do prato que continha alimento! O prato podia ser inanimado, mas pelo menos se associava a alguma forma de satisfação."
2/15/2008
discurso e ode do poeta Waly Salomão antes de se fechar a última porta do paraíso
eu sou o dervixe
a lua marginal
o enigma
e lanço pérolas aos poucos
devagar
com o andor que pude cavalgar
num transe
me segura
me segura que eu vou dar um troço
um truque
esse é o lance
eu troco porcelanas astrolábios
gengibre e madeiras do oriente
perfumes do meu canto
pelo que você quiser
eu troco
marfim e seda nobre
do meu canto
100 gr. de canela é ouro em pó
no armarinho nobre dos meus versos
casca de noz moscada das ilhas banda
e o cravo das ilhas molucas do meu canto
eu sou o canto da sereia
tampa os ouvidos
nobre viajante
sou o dervixe
o mercador fenício
o sábio marginal
o esteta
e desfio folha a folha destes livros
debaixo da fonte primal do chafariz da praça
sitiada
vem que tem
no meu armarinho tem
mercadoria fina
especiarias e outras
miudezas
me segura
segura aí malandro
me segura que eu vou dar o troco
eu sou o dervixe
o enigma
o curinga do baralho
e vou pedir licença aos deuses da poesia
pra me sentar no chão
bem do lado da cadeira que eles a mim
destinaram
eu sou o cavalo
dos orixás sem corpo da poesia
e solto um grito na mata
solto coices no ar:
eu sou o caboclo
o encosto
o orixá-menino-mutante
sou a delicadeza e o espalhafato
eu sou o ato e a potência
e vou pavimentar o solo incerto
onde vão caminhar os novos bardos:
poetas do futuro!
tudo está por dizer
escrevam as canções que eu não vou escutar
a poesia é o fundo do abismo sem fundo
onde pulsa
onde pulsa
pulsa
pulsa
a poesia é a rebelião
a poesia nunca é mercadoria
e contra o muro de minha própria ignorância
que em frente a mim se expande e esplende
eu cavo
cavo
& cavo.
2/14/2008
O que é morte? versão 2
nada a dizer
em relação à Economia
ou à Política,
produtos da Vida.
Tampouco,
em relação à Ética,
essa ilusão demasiado
humana.
Nenhuma ligação, também,
com a Profilaxia,
essa piada
do dia
(a)dia.
Quanto a Deus,
à Justiça ou
à Honra,
apenas o vazio
espiralado
da indagação.
Da Morte,
dessa minha plena Idade,
percebo o elo,
inevitável e sereno,
da
Grande
Moral
da
História.
2/12/2008
Eu, Daniel, Saramago e as Pequenas Memórias
Ao meu Avô Ermelino,
aos avôs de Daniel e Saramago
Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mais expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nessa hora de melancolia é a do velho que avança sobre a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes de seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?
(José Saramago, As Pequenas Memórias)
2/10/2008
uns tragos com Rimbaud
feito um cego
procuro meu degredo
busco sinais pelo século
filosofias sistemas sofismas
cismas
tudo é quase secreto
sob o véu de um céu aberto
chaga
vou pra esse mundo e nego
seu fundamento
sou secamente guiado
pelo momento
sinal aberto
e nem assim desperto
do sonho:
PRIVADO DA MEMÓRIA ESTOU FELIZ
O que é Morte? - Mapa conceitual
2/07/2008
nenhum mar (trechos...)
"Language is a virus..."
W.S. Burroughs
falando com o relógio digital
Copacabana ruge e cospe cinza
mas ele marca 38 graus
e são 18:15, os carros passam
ele parece não me ouvir nem ver
(esfinge de metal e sem enigma)
- pergunto pra ninguém feito um babaca:
pra onde foram todos os hidrantes
e certas pulsações da minha infância
que anda perdida em vãos pela cidade?
não vou surfar de volta pro passado
porque é lá que não me reconheço
de lá não sou quem parte pro futuro
pra me encontrar aqui desencontrado
à espera de zarpar, e não há mar
SANGRANDO toda palavra sã
Aos Epistolares
William Burroughs, in Naked lunch
Íris, meio chinesa e meio negra – viciada em diidroxi-heroína –, toma um pico a cada quinze minutos, para cujo fim deixa êmbolos e agulhas espetadas pelo corpo todo. As agulhas enferrujam em sua carne seca, que cresce aqui e ali, cobrindo a coisa completamente e formando um quisto liso, verde-marrom. Na mesa à sua frente, está um samovar de chá e um tablete de dez quilos de açúcar mascavo. Ninguém jamais a viu comer nada além disso. Só pouco antes de um pico ela consegue ouvir o que alguém diz ou o que ela mesma fala. Então, faz alguma declaração simples e factual a respeito de si mesma.
- Meu cu está se fechando.
- Minha boceta está cheia de uma gosma verde horrível.
Íris é um dos projetos de Benway. – O corpo humano pode funcionar só com açúcar, porra ... Sei que alguns de meus cultos colegas estão tentando depreciar meu trabalho de gênio, acusam-me de pôr vitaminas e proteínas no açúcar de Íris clandestinamente ... Eu desafio esses cus sem nome a engatinhar fora de suas latrinas e fazer uma análise detalhada do açúcar de Íris e do chá. Íris é uma saudável boceta americana. Nego categoricamente que ela se nutra de sêmen. E deixem-me aproveitar a oportunidade para declarar que sou um cientista reputado, não um charlatão, um lunático ou um falso milagreiro ... Nunca pretendi que Íris pudesse subsistir exclusivamente por fotossíntese ... Não disse que ela poderia respirar dióxido de carbono e expirar oxigênio. Confesso que estive tentando a experimentar, sendo naturalmente contido por minha ética médica ... Em síntese, as vis injúrias de meus nojentos adversários cairão sobre eles inevitavelmente, e virão empoleirar-se como um pombo chamariz de volta ao lar.
Welcome Mr Ego
Ainda me caso com esta máquina de xérox:
Fixei a consciência do chefe contra
O pano de fundo da magreza -
A odiosa retidão e a perversidade íntegra
De imperadores tímidos e vingativos.
Tibério reina dentro e fora
Da googlesfera e avisa
No entreato dos prêmios:
O meio é a massagem.
2/02/2008
Futurologia
(não, não se trata de ficção, foi apenas o conceito de Guerra Absoluta pensado racionalmente, sem sentimentalismos, nada a ver com o Dr Fantástico, o filme, sim os livros estão aí pra quem quiser ler e o Hudson Institute anda muito bem, é, com as oito pernas, agora está sediado em Washington e mudou do tema combate ao comunismo para a inclusão das minorias, as pessoas não sacaram, mas a máquina está em pleno funcionamento, como explicarei na palestra Apocalipse Para Sempre com um Apêndice sobre O que Será do Livro no Ano de 3807 e o que isso Diz sobre a Importância da Escrita para Aqueles que, na Falta de um Termo mais Metafísico Ainda, Apostam na Imortalidade com Bisturi, Geometria ou Narcisismo, e que Perdem o Sono ao Pensar se a Vanguarda de Ontem é a Retaguarda de Hoje & se Elogio é Moeda Podre como Imóvel no Coração do Império seguido de uma Nota de Rodapé sobre Mr Kurtz e Fitzcarraldo e a Função da Cultura num Mundo sem Fricção portanto sem Resistência)
nº 14
desfiladeiro abaixo, tenso, com um sorriso na face, corpo fechado, ao lado de Ogum.
Não houve terra estranha
que não desbravasse a sua mão,
e na hora do inventário, ao ver o placar a seu favor, o balancete
do destino amarga todo o passivo
dos anos em cascata, e mesmo assim você retesa o braço – o Tempo
não vai lhe ganhar tão fácil.