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Anuncio ao interfone uma carta
Num envelope tão branco,
Quase translúcido.
Na carta, ainda que num texto
Repleto de linhas negras
De um plástico indecifrado
Ofereço o seio canceroso
De minha mãe:
A ser levado num tupperware,
A qualquer funcionário dedicado
E indiferente.
Ou quem sabe
Ofereço trechos da minha carne
Ao grande açougue
Dos robôs sanguíneos –
Tanto faz, afinal
Qualquer carne é branco-rosa
E repulsiva,
Como a dos peixes
Quase podres entre as pedras
De gelo.
O envelope, contudo,
É quase translúcido
E tem que passar pelas mãos
De Oito-Olhos (desta vez
Convertido numa velha de cabelos vermelhos,
Responsável pela comodidade
Do condomínio).
2
Oito-Olhos interrompe o laborioso serviço de faxinar o asfalto com torrentes de água, aperta a vista como o senhor de sua atenção que ele é, tenta desembaraçar o conteúdo, as linhas negras que amarram a carne da carta.
Oito-Olhos sorri com indisfarçável alegria:
Ali,
Onde não sou digno
De confiança
É onde sou fraco.
3 comentários:
Samsa?
A carne do texto, e sua via crucis, a carne atrás do texto (as linhas negras, linda imagem).
Muito bom isso, Daniel.
mas como sempre me escapa(m) alguma(s) coisa(s): porque nº 85? Não consegui captar a relação....
abração
Oi Aldemar,
nem é uma relação direta mesmo, é que coincidiu porque agora to lendo umas coisas do Kafka prum grupo de discussão aí, uma coisa leva a outra, e achei que seu poema 84 tem a ver com um dos pra mim mais impactantes relatos do Kafka, um que chama a construção. o absurdo de erguer paredes contra o vazio, o labirinto, a cidade impossível, e, finalmente, o fato de sermos pensamentos mal-humorados de Deus.
Mas confesso que qdo pus o "85" não foi uma coisa muito pensada.
Abraço,
Daniel.
Pensar é estar distraído do sentir, e vice-versa, como dzia o velho Pessoa/Caeiro.
abração.
Segue a conversa.
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