4/21/2008

Manual Técnico da Dispersão e do Esquecimento



Coloco Kafka num vidro vazio de maionese. Tampo hermeticamente. Kafka tem muitas pernas e muitos pelos nas pernas. Ele não imagina o que pretendo fazer, destino. Cerebral, gelado, recolho os fósforos que descansam no parapeito de mármore e apóio o vidro com cuidado sobre a grelha do fogão. Planejo o movimento de minha mão no volante do gás com precisão, é necessária a mínima abertura para se obter a mais branda e uniforme chama. Kafka anda por toda a superfície interna do vidro de maionese, ele quer sair. É impossível, não está em suas mãos. Fora isso, as paredes são muito lisas e ele deve sentir extrema dificuldade em fixar-se a elas. Não sei como ele irá perceber o aumento da temperatura, que já começa na base do vidro – ele está próximo à tampa, na extremidade oposta, e não tem arquivos para avaliar a extensão do que irá ocorrer, do que lhe está acontecendo neste exato momento. Mas é inevitável, ele se movimenta instintivamente à cata de saídas e acaba tocando o vidro que começa a arder, em progressão geométrica, pela comunicação das moléculas em feroz movimento vibratório. O ar se rarefaz e turbilhona, aquecido e sem nenhuma emoção. Kafka demonstra desespero em seu instinto de permanecer vivo, e pula enlouquecido tentando subir pelas paredes cada vez mais lisas e ardentes da embalagem lacrada, mas não há lugar onde possa repousar as pontas de seus pés, não há pouso nem lenitivo para o que acontece. Não está em suas mãos. Por fim o vidro parece querer explodir e Kafka tomba sobre a parte mais quente, sobre a chama, destino. Ainda descreve pequenos círculos no ar, intermitentes, inarticulados, com duas de suas pernas, antes de cessar para sempre o que antes era vida. Não tenho um sentimento particular por Kafka, nem mesmo agora que jaz no fundo da embalagem de vidro, não me interessa o seu desespero inaudível, e talvez por tais motivos foi esta a melhor maneira de representar a angústia íntima que alguns versos produzem e o espanto de certas tardes, quando o coração arranhava a argila fria das paredes querendo escapar, sem ar, sem ar, sem ar.

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