11/30/2007

nº 66




Não há mais rosa ou girassol. Para um outro
jardim deslocado, o aroma da pétala
ainda paira no ar rarefeito.
Seca, a terra - entregue à solidão dos astros
que nunca respondem – agarra-se ao espinho
e o emoldura: dele é que faz a pena
e risca em si, como se tatuasse auroras na agonia,
uns versos, íntimos
do espanto.
(das "Notas Marginais")

Navio Manaus

O texto que segue é história, nada de literatura. Nele investigo, a partir de uma montagem sobre dois diários de viagem (O Turista Aprendiz e Memórias do Cárcere), o significado do Navio Manaus para o Brasil contemporâneo. Há a base factual, comprovada de acordo com os mais rigorosos métodos positivistas, de que Mário de Andrade e Graciliano Ramos tomaram o mesmo navio (o Manaus). O primeiro foi em busca do "Brasil autêntico" nos idos de 1920. O segundo foi levado sob a acusação de "inimigo da brasilidade". As duas viagens consagraram os dois escritores (cada um à sua maneira). Há quem acredite que a história é o Império da Conciliação.

Apenas justapus trechos dos dois diários, o que, diga-se de passagem, foi muito fácil: eles se encaixaram direitinho. E não se engane: não há aqui a menor sombra de pós-modernismo, desde o século XIX a história repousa como uma sanguessuga sobre a literatura.


Mário de Andrade Graciliano Ramos


Não é injustiça ser feliz.

A tarde caía, havia luzes.

Os ventos varriam o Recôncavo, toldados por espesso nevoeiro:

chispando água e mar, uma escuridão branca.

O céu cinzado era uma nuvem só. Detive-me,
e a lâmina espetaculosa da cidade, piscando os olhos,
se aconchegava numa palidez indiferente, tentando habituar a vista.

Um sol antigeográfico tropicalizava. Via-me no fundo de um poço.
A boca-da-noite batia na chapa da cidade, enxergava estrelas altas,
S. Salvador se torcia toda em rostos curiosos,
gozando a luz que é dela, onde se aglomeravam polícias
com muita mansidão.

Era como se fôssemos ninguém-jamais-não-conseguirá, gado, e nos empurrassem,
aqueles rosas doirados, pra dentro de um banheiro carrapaticida.

Aqueles azuis de Virgem Maria - não podíamos recuar -
aqueles amarelos de areia esturricada obrigavam-nos ao mergulho.

Cor dos anos, simples rebanho, apenas.
Cor de séculos, rebanho gafento necessitando creolina,
montados uns sobre os outros...

Tentei sondar a bruma por riba do farol de Amaralina, cheia de trevas luminosas.
Trepava no paredão do morro (idéia absurda)
um magote de coqueiros brincalhões (que me parece razoável)
em surdina, gritando nas trevas luminosas:


Olha o navio!

Olha o navio!

11/29/2007

nº 2




A linha sinuosa do amor atravessou sua pele
e você,
noite sem luz, todo por dentro um escuro sem tamanho,
não pode perceber em que parte do corpo foi escavado este caminho estreito e suas margens difusas.
Fora é sempre dia e as manhãs se repetem encadeadas
quando luzem sobre a linha que se afasta e inaugura outros territórios, acolhendo peregrinos pelo que se segue, curso aberto.
O tempo atrapalhou-se no seu fluxo e lhe ancorou a este entreposto,
presente que nunca se afasta:
os propósitos desencontrados são projéteis contra a pedra à sua frente
e agora sim, agora é o meio do caminho,
você está no meio, mesmo que algo lhe diga,
qualquer coisa lhe diga
que não seja assim.
(das "Notas Marginais")

11/28/2007

nº 15




Sumidouro das coisas, espiral
que tudo abarca – as emoções
no varal quarando sob o sol das décadas enquanto a pele
esturrica.
Se lhe chegasse o Bem, ávido, indeterminado, frio como um tição
iniciaria o primado da esperança e, em torno da fogueira,
sem ás na manga – observem bem, senhores – seria mesmo o paraíso.



(das "Notas Marginais")

11/27/2007

Arquicenas 2 (ou Conversa de Sauna Politizada com GF, SBH, PP, CPJ, OC, RA, DM, FHC e Lula Mendonça) ou Síndrome da Fala Reacionária

este país não esste país aponto os dedos no apontador de lápis e desenho sua própria canalhice e$te país é o reino indigente da burrice eSSte país me desafoga e( )te país não tem jeito jeitinho jetom jetset gente e$$te país não tem genitivo na língua neZte país falta inteligência como definir uma cadeira a um marciano dizendo-lhe o que uma cadeira não é eSte país uma cadeira não serve pra saltar uma cadeira não ilumina o mato escuro uma cadeira não se toma em sete gotas eSHIt país é o que falta a ele mesmo na definição d'Eiste país muito me envergonho de suas barganhas eUSte país corrupto infecto inseticida CHiste país de exilados na beira da praia chupando a manga maldita como o vendedor de caranguejos ou o próprio caranguejo arranhando suas costas (litorâneas) numa clima de acupuntura neo-pentecostal eIS-te país e seu presidente bêbado eXtase país e seu povinho sórdido MeUste país arde na língua como uísque queimando afta NestLe país não desinfeta eStIll país um mar de insetos ainda ontem caguei um besouro que se misturará à lama do Tietê HeilSte país e seus devaneios com preás gordos e seus montes de cuscuz e o atraso medido no meu relógio de pulso Restinpeace país dele ainda me salvo com zelo no elevador com Ronald Azevedo, Diogo Cão Mainardi e Oliva de Carvalho este país quanto é mesmo o preço do quilo.

11/25/2007

Ordem

Enquanto as páginas do jornal são meticulosamente folheadas,
os olhos vermelhos do garoto balançam a bandeira,
a mesma bandeira da mãe,
aquela que não dorme há 3.650 noites.

Em contrapartida, a velha senhora engole mais um barbitúrico
e mais um
e mais um
e sonha com seu paraíso das flores de plástico
e do mar de pouco sal.

As toalhas delicadas estão todas limpas
e a mesa escorre pelos cantos:
saladas
frutas
sucos
desenham arcos-íris transparentes que se perdem por aí.

Felizes, as meninas dançam nos pés de seus pais,
homens amargos encharcados de álcool,
verdadeiros james bonds
que só esperam a hora de trepar.

Eu tinha 20 nos 80



11/24/2007

A menina morta (a fé perdida, a inocência etc)

O corredor
Parece não ter fim
Nos passos das sombras
Sonâmbulas
Velas acesas na parede
Dançam verdes
No espaço viscoso.

O corredor da casa grande
Labirinto de 7 saídas
Como

os passos

de uma criança
- Entre flores e tecidos
brancos -


Transparente.


11/23/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

(s.f.)
É uma ficção muito bonita e sutilmente elaborada que, ao perder-se, não se encontra nunca mais (algumas pessoas pensam que a perderam quando apenas realizaram uma transferência: passam a ter fé em sua falta de fé – aqui pode acontecer nova transferência ou deslocamento: para qualquer outro deus). Você nunca mais a encontra porque ela costuma desaparecer junto com a inocência, em mais uma prova de que realidade e ficção caminham sempre de mãos dadas. Neste caso (e tão somente neste caso) é besteira pensar que as duas se entregarão a práticas que têm como resultado o prazer, o êxtase e o delírio e sofrer o desespero rubro do ciúme em função disso. Não, mesmo não sendo nenhuma das duas assexuada, as suas taras se deslocam em territórios não comuns e o que as une se expressa exclusivamente na flor da metafísica, apesar das mãos. Perder pode ser um começo.

11/22/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Felicidade (s.f.)
Imagine um oceano. Águas, encapeladas ou planas (ou suavemente ondulantes, daquele balanço faz do barco um jogar sem fúria e sem descanso). A brisa e o sal na brisa. Fora do silêncio só o barulho das vagas, marulho. Céu azul ou negro e pesado, não importa – a felicidade não é aí.
Imagine a profundidade da água, o mais profundo que sua imaginação possa formular. A espessura da água e sua pressão crescente, a falta de ar, o silêncio que se amplia a cada jarda. Podem passar peixes ou não e decerto nenhum escafandrista altera o curso do imenso volume líquido que se desloca, você não sabe pra onde. Deslocar-se e ir, é o que a água faz. Você tem que se manter quieto diante da determinação do que flui, incessante. Aqui o panorama mudo e chegamos ao solo duro, frio e submerso. Impassível, o solo. Imóvel. Os grãos de areia que parecem pender em suspensão não representam mais que a ilusão de leveza, aqui nada é leve, nem dócil, nem fácil. Aqui os crustáceos desarticulam o rumo de suas presas e as entregam ao destino. A felicidade também não é aqui. Imagine ferozes perfuratrizes solo abaixo, rasgando tudo, imagine a pulsão das perfuratrizes solo abaixo, seu desespero em penetrar profundidades abaixo, profundidades abaixo, profundidades abaixo até encontrar. São bolsões subterrâneos, cavernas ocultas. A felicidade está ali. Alguns, na superfície, se contentam com a suposição da força destes lençóis, com imaginar – enquanto deslizam sobre o espelho das águas – o quanto de energia se move nestes reservatórios fechados. A estes chamamos ‘místicos’ quando estabelecem mapas e organizam rituais onde se pretende apreender o espanto do encontro com o que se esconde. Outros perdem a vida no esforço de perfurar, sem ciência, sem potência, sem direção – estes são a maioria. Alguns poucos talvez, talvez ninguém, quem sabe apenas lenda, mas só estes poucos conseguem, num ímpeto, arrojar-se solo abaixo, ainda que sob o risco de morte ou dissolução, até onde o tesouro se encontra: de seu êxtase nada escapa que possamos apreender. Ele é solitário, ausente, errante e talvez sem retorno. Talvez apenas quimera.

Arquicenas 1

sob sorrateiro falatório, em


re


finado


re


feitório


apressados, pressurosos,
(porque, eis o pressuposto:
ter não é re

ter)


apresentam-se os dois
sub(canalhas)prefeitos do Centro
de Campinas:

Conde Hermann Von Keyserling com seu cérebro de volutas intestinais
de capivaras mortas
Barão Ernest Seillière e o séquito de andorinhas verde-abacate
amestradas no abate das matronas do Cambuí:

orientalistas de plantão
no fim de semana
rabiscam no vidro fumê
da sauna verde
anauê:

desta vez
o sábio chinês
não sabia se era

a mão
o ventilador
ou a merda


11/20/2007

Bonecas

Espalhadas por entre as folhas, galhos, gramas,
e nós,
pequenas ninfas,
jardineiras de bonecas feito flores:
cabelos sintéticos,
pele de plástico,
olhos de vidro.
Ríamos e ríamos e ríamos.
E nem percebíamos
os males que nos cercavam
- e cercam -
dessa cidade aos pedaços.
E eu tocava sua alma,
minha irmã,
minha irmã.

11/18/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Piada (s.f.)
É o sentido mais profundo e subjacente da maior parte dos atos de sua vida. Às vezes toda a sua vida pode ser uma grande piada, ainda que sem nenhuma lógica - depois de 1913, não sei bem quando (pois saber às vezes cansa), impuseram o surrealismo por decreto e a lógica foi definitivamente exilada, embora pareça retornar eventualmente, como cabe às mentiras muito arraigadas (sobre este assunto, ler o conceito de ‘inconsciente coletivo’ em C.G. Jung). Dizem que rir é o melhor remédio, mas quase sempre dói. Se sua vida inteira lhe parecer uma única e grande piada, você pode ser o que se chama de um “Grande Autor” (nada demais, existem mais exemplares deste tipo do que já ululam nas livrarias, nas editoras e mais modernamente nos sites de literatura; se você além de ser um Grande Autor se acha um, é também um Idiota Absoluto ou um Cretino Perene, conjunção perfeita de onde se extraiu aquele ditado popular que diz que merda pouca é bobagem, o negócio é penico cheio. No final, como se sabe, vai tudo pelo esgoto – até você).

O Saber Inflacionado (Oito-Olhos e seu texto utópico: uma nota de rodapé pra cada palavra)

E a justificação1 biológica2 da violência,3 aparentemente tão nova,4 não equivale5 em nada aos seus substitutos, cuja combinação poderia no entanto produzir6 o mesmo sentido.7 Em suas transações8 com seus concidadãos,9 pode misturar-se a eles, sem no entanto vê-los; toca-os mas não os sente; existe10 apenas em si mesma e para si11 mesma.12 Reduzida ao estilo,13 ela trai seu segredo, 14 a obediência à hierarquia15 social.16


1 Jusitificação como topos retórico, no sentido de argumento que visa a legitimar outro conjunto argumentativo, indiretamente relacionados. Não se tratanto, portanto, de coerência lógica, mas de plausibilidade. CF. Perelman, Chaim e Olbrechts-Tyteca. Tratado da Argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
2 A delimitação de um história natural, com a inclusão do homem como parte orgânica da natureza, foi exemplarmente estudada por Michel Foucualt em: As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995. É no sentido proposto pelo pensador francês que uso aqui o termo “biológica”.
3 Sobre o conceito de violência, uma referência fundamental é: René Girard. A violência e o sagrado. São Paulo: Editora UNESP, 1990. Uma visão alternativa sobre o mesmo tema pode ser encontrada em: Georges Sorel. Reflexões sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Ambos os autores, no entanto, justificam a seu modo a violência, e estão como contraponto à minha teoria.
4 Até aqui, esta frase é uma reprodução de um trecho de Hannah Arendt, in: Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 145.
5 Falo de equivalância no sentido proposto por Wittgenstein, que demonstrou a falência lógica dos modelos de identidade no sentido matemático. Equivalência é, portanto, apenas uma semelhança possível num determinado jogo de linguagem. Cf. Petrópolis: Vozes, 1994.
6 Para uma discussão mais recente do conceito de “produção”, cf. Michael Hardt e Antonio Negri. Império: Rio de Janeiro: Record, 2000.
7 Entre o final do trecho citado de Hannah Arendt e a palavra “sentido”, acompanhamos de perto a obra de Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 2003, p. 150.
8 Notar a ambigüidade das transações, uma idéia de troca que pode ser pensada bem no veio da tradição liberal. Mas pode ser também a idéia de “transa”, no vocabulário para alguns desbundado da curtição marginal dos anos 1970. Cf. Torquato Neto. Torquatália. Obra reunida. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
9 Entendo por concidadão a versão sobre as comunidades imaginadas de Benedict Anderson, in: Nação e consciência nacional. Rio de Janeiro: Petrópolis: Vozes, 1987. Mas devidamente complementado com: Claudine Haroche. “O que é um povo? Os sentimentos coletivos e o patriotismo do final do século XIX”, in: Jacy Seixas, Maria Stella Bresciani e Marion Brepohl (orgs). Razão e paixão na política. Brasília: EdUnB, 2002.
10 Claro que não pode se tratar aquí do conceito heideggeriano de existência. Expresso em: Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.
11 Em si e para si, corresponde à fórmula clássica de Hegel. Mas não é neste sentido que a empregamos aqui, mas numa acepção mais livre. Cf. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1981.
12 Frase tomada de Tocqueville, apud. Richard Sennett. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 7.
13 Sobre a noção de estilo, apenas como breve indicação: Carlos Reis. Dicionário de teoria narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
14 Uso o termo segredo no sentido proposto por Alain Corbin, in: “Bastidores. O segredo do indivíduo”, in: Michele Perrot (org.). História da vida privada. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 419-502.
15 Aqui a referência é Louis Dumont. Homo hierarquicus. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
16 Frase final reproduzida a partir de Adorno/Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.

11/17/2007

nº 65



Secar, secar até ultrapassar
a fronteira da pele, para dentro, e ver como numa vertigem
o limite do que você era lá fora, onde
ainda verdejam campos e umas flores
desnecessárias e trêmulas ao vento aspergem
seu perfume sem ligar pra nada. Aí,
quando quer encontrar-se, você
tem que sair de si em busca de outra esfera, aliás
você mesmo ali além do nada entre o que pulsa
e o que seca ainda mais, cada
vez mais, na fervura
desta tarde em que parece tudo um buscar
ao outro, mas o outro
é mais longe, depois
dos vazios paralelos
em que se perdem as coisas, na sua maioria
distraídas.

(das "Notas Marginais").

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Merreca (s.f.)
É uma espécie de moeda universal, uma forma que o mundo utiliza para nos dizer que pouca coisa com efeito tem valor. Até o seu valor pode ser o de umas poucas merrecas. Ou muitas - é tudo merreca. Não há lógica no câmbio. O dinheiro, seja qual moeda for, em todos os casos se sobrepõe às merrecas como um decalque tão perfeitamente adesivo que ninguém levanta para ver o que está debaixo, a etiqueta verdadeira. A relação entre as duas é em tudo estranha: uma coisa que vale muito dinheiro pode valer apenas umas poucas merrecas furadas (esta é uma forma simbólica de traduzir o momento em que uma coisa que não tem valor algum vale menos ainda) e vice-versa, e pode-se também inverter a ordem dos fatores, porque a merreca enquanto padrão monetário vale tão pouco que entre mil merrecas ou um milhão delas e uma só não se vê qualquer diferença (talvez daí tenha derivado a noção de limite em Leibniz e Newton). Consoante à tendência de ver no dinheiro algo espiritual, poderíamos esboçar a teoria de que nossa alma é constituída de merrecas (cada um teria uma quantidade diferente, é óbvio). A merreca seria assim uma espécie de célula ou mônada do espírito, o salto quântico entre o mundo metafísico e o físico, exatamente o que Platão não soube perceber quando escreveu aquele poema em prosa inventando um céu dos universais (ou algo assim, é tudo poesia mesmo), no dia em que estava organizando uma rave dentro de uma caverna com uns rapazes legais e virou-se para mijar tendo uma fogueira atrás de si (ou foi virado por um dos mancebos, de encontro à parede rochosa, para outros fins - mas isto a História não registra exatamente, embora o êxtase subseqüente pudesse explicar a iluminação). Isto aconteceu muito provavelmente porque não existia o Capitalismo (ou existia, em formas muito primitivas), a religião que tem a chave dos corações humanos, mesmo quando estes são socialistas (onde ocorre apenas uma substituição de moeda, por exemplo, dinheiro por poder – aos anarquistas é dado o benefício da dúvida, embora aqui a moeda possa ser o niilismo). Se você achar qualquer coisa (qualquer uma mesmo) que não possa se traduzir em merrecas, agarre-se a ela com furor e não solte nunca mais. Parece que foi isso que fizeram alguns dos grandes místicos do passado e também Don Juan, embora dentre as inúmeras tenham passado tantas merrecas em sua cama. Não se pode ganhar todas, nem em merrecas.

11/16/2007

Psicografias e outros maculelês do espírito (2)

(este aí esqueceu de se deitar...)

DATADO

O Tempo errou’, penso, aqui no chuveiro.
Vou escrever um soneto e provar
que sou antigo e aí argumentar
com a noite, com a TV, com o desespero,
no caminho entre o quarto e o banheiro
como um cego que, ao par de não enxergar,
vê as horas despencarem do ar
com o pensamento, o amor e o desejo.
Não! O Tempo não erra, erramos nós
quando, frente ao espelho, sonhamos alto
sabendo o que é o mundo e que são belos
ou feios os caminhos. Não são. Pós-
tudo, agora, outra questão me assalta:
onde foi que perdi os meus chinelos?

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Perdeu, maluco! (exp.)
É um “sair no arroz” à máxima potência, às últimas conseqüências (se você não sabe o que é ‘sair no arroz’ consulte o verbete específico; se puder passar a vida sem saber será melhor). E não adianta ficar com cara de idiota mesmo que você seja um: as raves continuam. Apesar de você. “Amanhã há de ser outro dia” é uma boa mentira onde se agarrar para esquecer que os desbastes do tempo amputam em definitivo partes suas e as largam por aí você nem sabe onde, longe de tudo e talvez junto às certezas, que já estavam todas por aí. Nem adianta ir depois a todas as raves e pegar todas as mulheres que puder, mesmo que você possua o desembaraço e talento para este fim, além daquela febre que só os que sabem que vão morrer possuem. Seria ridículo, aliás como você (explicando aos néscios, parvos e nefelibatas: ‘rave’ comparece aqui com um sentido metafísico, assim como ‘pegar’ e ‘mulheres’; ‘idiota’ e ‘ridículo’ não: são isso mesmo, como quando lhe dão um “perdeu,maluco!”). Nada adianta nesta situação, mas eventualmente uma súplica pode ser bela como a música estranha que a água produz em sua passagem pelas cordas vocais do afogado que assim canta seu último cântico, em desespero, geralmente olhando para um céu impassível e frio: não serve para nada, não o salva, mas pode até produzir beleza e mesmo Arte. Ou pode ser ridículo como o são os poemas em sua maioria, ou excessivo, ou dirigido apenas às aparências no rastro da quase totalidade dos atos e das coisas. Você tem duas opções: sentar e esperar (assim aconselhava aquele sábio chinês, e você sabe que sábios chineses estão sempre certos, mesmo quando estão errados), ou enfiar o próprio dedo em algum orifício de seu corpo e rasgar com violência. Difícil saber qual o mais doloroso. Quem escreve estas linhas desconfia que seja o primeiro porque não está inclinado a experimentar o segundo.

11/15/2007

Cagaram na tua cabeça (Ou Síndrome Coletiva do Poder)

Por causa do seu significado característico, preciso ainda fazer algumas observações sobre a pergunta mencionada: 'Por que o senhor não caga?', por menos decente que seja o tema de que sou constrangido a tratar. Como tudo o mais no meu corpo, também a necessidade de evacuação é provocada por milagre; isso acontece da seguinte maneira: as fezes são empurradas para a frente (às vezes também de novo para trás) e, quando, em conseqüência da evacuação já efetuada, não há mais material suficiente, lambuza-se o orifício do meu traseiro com os poucos resíduos do conteúdo intestinal. Trata-se de um milagre do deus superior, que se repete pelo menos muitas dúzias de vezes por dia. A isso se liga a idéia quase inconcebível para o homem e só explicável pelo completo desconhecimento que Deus tem do homem vivo como organismo - a idéia de que o cagar seja, de certo modo, o último recurso, isto é, de que por meio do milagre de cagar se atinja o objetivo da destruição do entendimento e se torne possível uma retirada definitiva dos raios. Para chegar aos fundamentos da origem dessa idéia, parece-me necessário pensar na existência de um equívoco com relação ao significado simbólico do ato de evacuar, ou seja: quem chegou a ter uma relação correspondente à minha com os raios divinos, de certo modo está justificado a cagar sobre o mundo inteiro.

Mas ao mesmo tempo se revela toda a perfídia da política que se seguiu em relação a mim. Quase toda vez que se provoca em mim, por milagre, a necessidade de evacuar, envia-se – estimulando os nervos da pessoa em questão – uma outra pessoa do meu ambiente para me impedir de evacuar; esse é um fenômeno que durante anos observei um sem número (milhares) de vezes e de um modo tão regular que fica eliminada a idéia de casualidade. Então, à pergunta 'por que o senhor não caga?' me é dada a brilhante resposta: 'porque sou burro, algo assim'. A pena quase se recusa a escrever o nome absurdo, segundo o qual Deus, em sua cegueira, causado na realidade por seu desconhecimento da natureza humana, chega ao ponto de supor que possa haver um homem que, por burrice, não consiga cagar – coisa que qualquer animal consegue. Quando, então, no caso de uma necessidade, efetivamente evacuo – para o que me sirvo de um balde, dado que quase sempre encontro o banheiro ocupado -, isso se associa toda vez a intensíssimo desdobramento da volúpia da alma. A libertação da pressão provocada pela presença de fezes no intestino tem como conseqüência um intenso bem-estar, que é provocado aos nervos da volúpia, o mesmo acontece no ato de urinar. Por esse motivo, sempre e sem exceção, os raios ficavam unidos durante o ato de evacuar e urinar; e, justamente por essa mesmo razão, toda vez que me disponho a essas funções naturais procura-se, embora quase sempre em vão, desfazer por milagre o impulso à evacuação e à micção.”


(Daniel Paul Schreber, em Memórias de um doente dos nervos)


11/14/2007

Psicografias e outros maculelês do espírito (1)

(algum parnasiano cretino passou por aqui e me ditou isto. Não consegui evitar, nem explicando que nos tempos ultramodernos, etc. Deve ter morrido tuberculoso, falando com as paredes sobre epos e mythos).

SÓ À ESPERA

O medo de amar, de um certo modo
(e todo meu), achei ter sido a minha
defesa inteligente contra o estorvo
de sentir. Não. Não percebi que eu ia
a um labirinto escuro, acorrentado
e até feliz, tendo a meu lado o dia,
achando que com teoria e estudo
não perderia o espírito. Não via
as úmidas paredes e pisava
um aparente céu: já movediça
era a areia em que hoje me engano
ao pretender sair. Quebrei as asas.
O minotauro vem. Quer sua carniça.
Agora sento aqui e espero o dano.

11/13/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Inocência (s.f.)
A única coisa no mundo diante da qual vale a pena curvar-se. Todas as demais coisas, cuspa nelas. São iguais a você, ou quase (“apedreja esta mão vil que te afaga/escarra nesta boca que te beija”), no sentido de que ainda não deterioraram ao mesmo ponto que você. Ao deparar-se com a inocência jogue-se imediatamente ao chão da forma mais abrupta possível: a idéia é machucar-se na queda, mas sem assustá-la - e lamba o chão na parte mais suja que houver para lembrar-se de sua baixeza e inferioridade diante do que está à sua frente. Se puder não levante nunca mais, isso é o bastante para o que resta de sua vida.
Existem dois tipos de inocência: aquela que assim é por não ter entrado em contato com a sordidez do mundo e a que sobrevive e até se aprofunda mais ainda em contato com a mesma sordidez. A primeira é preciso preservar o máximo de tempo possível, a fim de que não se contamine logo e consiga comunicar suas qualidades a quem puder perceber. A segunda é a mais importante, pois conseguiu ser assim em contato com o mundo, o que em tese é impossível. Caso não encontre nem uma nem outra, prossiga em seu caminho de ignomínia e esquecimento.
Atente apenas para o fato de encontrar e não perceber, ela por vezes veste o manto do mundo nos seus estratos mais inferiores. Seria cruel. Com você.

11/12/2007

Entre poetas


1.
Daniel
Paul Schreber esteve no Brasil. Veio erigir o castelo capaz de resistir ao pus amarelo que brotava do mar e invadia o país.

Daniel
Paul Schreber, o afogado na potência dos raios divinos, poderia cagar no mundo inteiro

uma vez que

seus sonhos duravam séculos:

a fortaleza neogótica neoqualquercoisa labiríntica, a imensa torre citada e recitada em prosa e verso, o fosso de mijo e feras marinhas, a estátua do poeta-monumento Oito-Olhos declamava:

Qualqu er m er da que Eu diss er
Com c er teza Ali-
T
er ada Poesia
Pode s
er
Pois poeta é meu
S
er)

2.
Daniel
Faria:

O monge
O sábio
O sereno
O morto poeta português

O concurso literário
& a fraude do concurso

Grafitou na fortaleza:

Não escreva
Merda, Cague
No escrever.

11/11/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Macaquear (vb.)
Prática adotada por indivíduos ou grupos na falta de imaginação, talento ou coragem para coisa melhor. Muito praticada nos centros de saber das periferias. Nestes casos o sujeito, diante de algum pensamento fascinante que lhe chegue engarrafado de outras praias (de preferência as do centro, mas não necessariamente) experimenta uma sensação extática e vê seu pensamento realizar circunvoluções em torno de si mesmo ao som de um mantra (“É na boquinha da garrafa/ é na boquinha da garrafa...”) e desce em conformidade com a lei que rege os corpos mais pesados que o ar. Alguns se contentam com a simulação do ato, outros necessitam dos estímulos do gargalo em regiões mais cheias de florações nervosas do próprio pensamento e há também os que entubam tudo vorazmente. Não que sexo anal não possa ser praticado de outras maneiras, mais criativas, prazerosas e românticas, até porque o romantismo e a dor são territórios muito próximos e às vezes em tudo coincidentes; mas para isso desaconselham-se gargalos. Ainda sob o influxo do êxtase que ocorre neste momento alguns cantam “allons enfants de la Patrie, le jour de gloire est arrivé...”, ou “we are the champion, my friend...”. Alguns balbuciam “eu sou a filha da Chiquita Bacana, nunca entro em cana porque sou família demais”, mas na hora do sapeca iaiá adicionam a este sampler um esquema rígido de citação onde importam até as maiúsculas e minúsculas de uma forma que a forma se torna mais significativa que o conteúdo (que por vezes nem existe mesmo), ou seja, o macaquear em estado supremo como em geral o praticam os Idiotas Absolutos. Aí é o fim definitivo da ginga ("você tem que fazer o pensamento dançar..."). No meio dos bandos de macacos às vezes um se destaca, como é o caso da macaca que deu com uns cocos na areia da praia vizinha à mata onde morava e descobriu que se quebrasse a casca e rebentasse a sapucaia chegaria à carne branca e tenra lá de dentro. Este destacar-se eventual pode servir apenas à perpetuação da espécie, o que é um desejo do impossível, obviamente. Nunca se percebe que a água do coco, a seiva, se perde na areia quando ele é quebrado deste modo. Uma característica importante quando se formam grupos afeitos a esta prática é o estabelecimento de um dialeto que forme uma parede dura e espessa onde está escrito: “Não entre, boçal!”; é melhor não entrar mesmo. Este que rabisca as presentes linhas, se for macaco, com certeza é um macaco-prego. Porque prego não bóia, afunda. Atentar que macaco e merda não são a mesma coisa, embora possam se parecer às vezes sob algumas condições, ou até serem a mesma coisa, apesar do que foi dito anteriormente, provavelmente em causa própria. O macaco-prego, mesmo quando é um merda, afunda, comprovando novamente que mesmo as coisas absolutas são relativas.

11/10/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Calar (vb.)
É o melhor que você pode fazer em qualquer situação. Quase ninguém pratica esta arte: uns falam desbragadamente até a ruína entregando seu ouro sem exigir sequer uns cobres de troco, outros escrevem poemas e ainda há os que fazem dicionários. Mas como não faltam malucos no mundo, poderíamos listar incontáveis formas de não calar, todas insensatas.

Dinheiro (s.m.)
É o deus mais cultuado pela humanidade, por mais de uma cabeça. Em segundo lugar, embolados na segunda raia, vêm Deus mesmo, Alah, Buda e outras ficções, como o Tao. Seu poder de arrebanhar fiéis é tão grande que muitos dos pretensos fiéis dos outros deuses cultuam na verdade apenas o Dinheiro que, num lance impressionantemente sutil de astúcia, coloca-se como uma dádiva dos outros, sob o codinome “Prosperidade”. Os mais descolados nas outras religiões admitem uma “energia” por trás do Dinheiro. Como Ele foi uma invenção da humanidade (ou terá sido o contrário, na medida em que esta serve àquele?) são grandes as possibilidades de que os outros deuses não passem também de invenções, embora algumas pessoas insistam que já falaram com eles – sem bem que fala-se até com as paredes, que até hoje também nunca responderam. Mas quem fala mais alto aos corações humanos é o Dinheiro mesmo e por Ele são cometidos todos os tipos de ato, dos mais puros aos mais vis. Faça a sua aposta, se bem que aposta é outra onda.

Pequeno (adj.)
Diz-se das coisas que são menores que outras a partir de quem julga, ou da escala que se estabelece. Assim sendo, é um conceito em tudo relativo. As coisas absolutas também são relativas. Muitas coisas podem ser pequenas – como, por exemplo, você por dentro.

Tragédia (s.f.)
É o grito do bode durante o sacrifício. O sacrifício é inevitável, incontornável e às vezes iminente. O que varia é a potência do bode ao berrar e sua ânsia de criar sentido. Sentido é outra miragem.

11/09/2007

Novo Pequeno Dicionário de Aproximações

Dicionário (s.m.)
Todo mundo escreve um ao longo da vida, mesmo que não utilize qualquer tipo de caracteres convencionalmente entendidos como escrita. O que muda é a quantidade de certezas (leia-se: mentiras) em que se acredita e o estilo da prosa. Os dicionários que explicitamente ostentam este rótulo são os mais enfadonhos e presos a coisas nem um pouco importantes. Quase nada é importante.

Mapa(s) – (s.m.)
São registros de impressões, através das quais você tenta articular uma lógica para os caminhos que percorreu, com maiores ou menores danos. Mas não tem lógica mesmo. Assim como as órbitas constroem a falsa sensação de ordem e não passam de elaborações de um desejo de fixidez que sua mente (ou seu corpo) produz para não arrojar-se em definitivo pelos vazios que se sucedem infinitamente. Os mapas podem doer como as fotografias, talvez porque tentem capturar um instante que flui nesta vertigem, e não adianta rasgá-los, eles se fixam em seus olhos como areia. Os mapas podem doer porque trazem pedaços da geografia, representam lugares onde você ficou como um detrito e ainda assim foi em frente, a despeito dos pedaços pulsando sobre o pavimento.

Novo (adj.)
Rótulo aplicado às mesmas coisas, repetida e sucessivamente ao longo da História, para iludir os outros de que se está criando algo diferente. Muitas vezes para iludir a si mesmo, o que é sempre mais fácil e rápido, mas não menos doloroso. No primeiro caso existem sempre motivações mais políticas (leia-se: poder) do que estéticas, embora sua cartilha nunca mencione a palavra “poder” ou mesmo a desqualifique (como algo não desejável). As poucas pessoas que de fato criaram qualquer coisa de diferente não ligavam pra isso porque tinham assuntos mais importantes e sérios a tratar e, talvez por este motivo, tornaram-se clássicos.

eu, Éluard e alguns unanimistas




eu

a cidade,
e por fim

a cidade.

luz, campana

entulho e merda.

eu, enfim
carne

e desonra

umas 2
ou 3 pombas
mortas

mar morto
que esbate

esbato

olhos
de cobalto

lâmina
e lágrima

agora seus olhos
por si

e por mim

e por fim

Leurs Yeux Toujours Purs

Poema tirado de uma notícia de e-mail

Fique sabendo que há outros sintomas de ataques cardíacos, para além da dor no braço esquerdo. Deve-se também prestar atenção à dor intensa no queixo, às náuseas e aos suores abundantes, pois estes também são sintomas vulgares.

Pode-se não sentir nunca uma primeira dor no peito, durante um ataque cardíaco. Muitas pessoas que tiveram um ataque cardíaco enquanto dormiam nunca mais se levantaram. Mas a dor no peito pode acordá-lo do sono profundo e livrá-lo do sono eterno.

Se assim for, dissolva imediatamente duas Aspirinas na boca e engula com um bocadinho de água. Ligue para o 193 e diga “ataque cardíaco!” e que tomou 2 Aspirinas. Sente-se numa cadeira ou sofá e espere pelo 193. NÃO SE DEITE!!!!

Pense no poeta confinado num quartel, o livro aberto sobre o criado-mudo, o ilegível Território Humano. Pense nas bitucas de cigarro que se acumulavam ao redor da cama. Pense no poeta que andava sem rumo na cidade circular, devaneando sobre como caberia no terreno de uma polegada quadrada; o poeta que foi encontrado morto depois de semanas, por causa do mau cheiro. Pense no detalhe patético dos pacotinhos de sopa Knorr em seu apartamento.


11/08/2007

nº 64




O Abismo é você. São poços
profundos, sem fundo, que você
enche e esvazia de tristeza, desespero,
amor, esperança, desesperança, alegria,
solidão, entre afogamento e
asfixia. Ainda que sem fundo, tudo
parece transbordar a certa hora, aquela
em que as mãos deviam poder se cravar
bem no centro e rasgar o invólucro do peito.
As mãos são frágeis e não podem mudar
destinos, elas se iludem ao fabricar
artifícios, se iludem moldando vasos, tirando
som de cordas tensas, riscando
versos, acenando, acariciando – elas são frágeis
e não podem nada, nem rasgar o peito até
a bomba que pulsa por detrás, o que seria
o único suicídio bom e justo, rasgar-se
sem o recurso de qualquer artefato.
Resta então resignar-se à sua cota
de dor e admirar a ilusão dos outros de que
o Abismo é distante, lá onde desapareceram
embarcações e monstros, além da linha
do horizonte - ou então
é o vazio depois da última estrela.


(das Notas Marginais)

11/07/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Sair no arroz (expr.)
Se você não sabe o que é isto mas teve a percepção de que não é boa coisa, talvez não seja um idiota (ou pelo menos não seja um Idiota Absoluto, pois existem idiotas que, apesar de sua condição, conseguem por períodos curtíssimos de tempo elevar os olhos um pouco além da lama que os rodeia). Sair no arroz é como ir a uma rave e não pegar ninguém, sair com uma mulher que você está a fim e não comê-la ou ainda realizar qualquer coisa meritória (uma ação, um afeto, um gesto, uma palavra) e não receber a contrapartida por este gesto (um romance histórico, a Bíblia, defende em meio a suas estórias a idéia deturpada da não necessidade de contrapartida, contrariando os princípios da própria Natureza que teria sido criada pelo Deus que inventaram ali - talvez por este motivo o autor não quis se identificar e ainda colocou uns fakes como co-autores pra tumultuar). Provavelmente esta expressão venha do Oriente, onde hordas de miseráveis têm apenas o arroz como alimento e ainda ficam com aquela cara de que não está acontecendo nada (e de certo modo, pensando bem, não está mesmo) – aqueles que deixam de ser miseráveis adicionam coisas no arroz, feito algas, peixes, legumes, frutas e especiarias (por exemplo, o gengibre que, para quem não sabe, é afrodisíaco), e aí já não saem no arroz. Como os do primeiro grupo poderiam ter destino pior, ou seja, não terem nem o arroz, sair no arroz não é a última escala do fracasso. Você podia nem ser convidado para a rave (e ainda pegarem a mulher da sua vida por lá).

O Marginal no Museu da Língua


Tenho medo da noite porque meu sangue é noturno. Na minha cabeça arde uma estrela desenhada por uma criança que sonha com ventiladores, com estrelas que giram e produzem vento, como se impulsionassem as mãos renascidas de um deus morto. Quando fecho os olhos sou toda a noite por dentro. A noite me reconhece porque sonho com olhos opacos e cegos que me olham e não me encontram no quarto escuro. Tenho medo destes olhos porque são os olhos da noite quando me enxerga e sabe que sou uma sombra oculta sob outras sombras, outras sombras ainda, em direção ao passado, ao mar noturno, ao castelo de areia em que dormem anjos noturnos mastigados pelos dentes noturnos do mar. A noite não se contenta com a profundidade das coisas ocultas, arma-se com visão infra-vermelha, joga um brilho azul berrante na sala do apartamento, torna a madrugada piegas e colorida. Tudo é deserto. Mas tudo tem que ser aceso e tudo tem que falar na noite desta cidade que já matou sua raposa há tempos imemoriais, esta cidade solar como o trono dos tiranos, como a andorinha absurda e obesa que nos vigia em seu pedestal dourado.


11/06/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Idiota (s.m.)
Pode ser você, ou não. Se você acha que não é, muito provavelmente é; se sabe que não é, ainda assim corre grande risco, porque entre achar e saber o limite é nebuloso: tem gente que acha que sabe quando apenas acha, e tem gente que sabe mas acha que não sabe e às vezes até com razão. Para todos estes casos só a ajuda de Deus, que a gente acha que existe. ( O autor destas linhas não se exclui, em absoluto, desta categoria – afinal, entre achar e saber, etc.).

Maluco (s.m.)
É você, naquele exato momento em que está acreditando em alguma coisa, qualquer coisa. Se esta afirmativa o incomodou, relaxe: são muitos os malucos e talvez todo mundo o seja por mais ou menos tempo.

Miragem (s.f.)
Tudo aquilo que você ama, ou amou. As miragens têm a incrível propriedade de se travestir em coisas sólidas, palpáveis, reais. Mas são miragens. Talvez você também seja uma.

o sumido (e outros xingamentos)

cheguei em casa
e quebraram
a merda do muro

pensei: vou re-tornar
a ser e(x)spontâneo

nunca ganhei nada
em ser_
SENDO

para colocar a bosta
de um registro
da cia. de água

sinto que tudo
está sujo

sinto-me sujo

ao fundo mais
destroços
e entulhos

aceita-se mais entulhos

mais 1 ano

1 ano

e todos ao sul
mais sós

ainda cantam.

cantamos.

11/05/2007

Feliz Aniversário, Epistolares!!!!


Aí, rapaziada, esta espelunca fez um ano mês passado, e não atrasamos o aluguel um mês sequer!!!! Fiz esta avalanche de posts pra comemorar a efeméride, atrasado como sempre. Um prazer compartilhar o espaço com vocês estes meses. De cada um aprendi coisas que me são úteis, ou importantes, ou meramente caras.

Obrigado a todos vocês. E apareçam mais, os sumidos.


Abração.
e vem aí o REDOR da Masé! Acho que agora sou o único virgem (empedernido) aqui.....

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Aproximação (s.f.)
Significa que você não está lá. Significa o desejo de entrar, como quando se penetra um corpo atrás de alguma outra coisa além do corpo (que pode não existir ou ter se mudado, não há garantias nem mapa). A tal da raposa que atravessa o grande rio e molha a cauda: infortúnio – ou algo feito morder as bordas da boca, limite. Perder-se.

nº 63




Isso que você fala é um dialeto, coisa
de exilado, ‘as paredes estão cansadas, cara’, ela disse, e as gaivotas
fingem não ouvir a ladainha aqui na praia
onde no ar estas linhas riscam pela concentração
da pólvora do seu ímpeto no mesmo circo
aéreo onde hoje afloram estoques do passado, amor, fracasso, silêncio, tudo
a favor da combustão que torna tórrida a terra
seca, a terra fria
e seca em que antes floresceram (em você) dúvidas
e primaveras.
(das Notas Marginais)

11/04/2007

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Amor (s.m.)
Parece que a principal questão aqui é refutar as abordagens dimensionais e acercar-se do conceito de densidade. Podemos nos afastar da compulsão de sermos exatos e recorrer àquela imprecisão comum a crianças e poetas: não se trata de vastidão ou profundidade, mas de peso e dureza. Alguém já deve ter utilizado a imagem do camelo em desalinho sobre a areia escaldante, arfando sob o massacre da força que o esmaga em direção ao solo, no seu olhar vazio a dúvida sobre o porquê lhe teriam aplicado tamanho fardo. O escritor contemporâneo Lalo Svoboda praticou esta visão num livro esgotado (“Você se fodeu, amigão”), onde se evidenciam algumas elaborações em torno deste conceito: impenetrabilidade, atrito, campo de gravidade.

Diálogo (s.m.)
Farsa habilmente desenvolvida desde os primórdios, causa forte impressão de que duas (ou mais) pessoas se comunicam. Um poeta e ficcionista grego (que gostava de se esconder sob outra denominação), na Antiguidade, tentou sistematizar sua forma e extrair-lhe novos usos, em vão: tudo não passava de sua visão deturpada de poeta (opróbrio acrescido pela tentativa de ser fake de um poeta maior em sua loucura, o suicida) Provavelmente sua função se atém aos organismos e sua preservação, no sentido de expressar as necessidades mais básicas como comida, sexo, calor, repouso, do mesmo modo como o vôo das moscas não tem outro sentido que o de moverem-se sem direção rumo a coisa alguma, extraindo da improbabilidade a surpresa provisória do alimento. Uns loucos já acreditaram, por maiores ou menores porções de tempo, que serviria para expressar indagações metafísicas, amor ou amizade. Contemporaneamente desenvolveram-se variantes deturpadas desta prática, utilizando-se os dedos no lugar das cordas vocais, o que não cumpre sua função orgânica e dá causa a outras tantas confusões, numa seqüência de simulacros sucessivos, embora sem relação aparente uns com os outros. Sem falar da L.E.R., o que denotaria o deslocamento de função. Ter lido todas estas linhas acima também não adianta nada: você só vai entender o que você quiser entender, caso queira.

Exílio (s.m.)
É o lugar onde você está. Algo como a fila do lado andar sempre mais depressa, sem importar em qual você entre. Não adianta mudar de fila. Nem de lugar. Poderia ser chamado de “deserto” mas é bem pior, o que se acentua progressivamente com a aproximação da morte (real ou metafórica).

Sexo (s.m.)
Tudo que pode ser dito se resume a uma palavra: memória. Passa por este território deixando profundos sulcos e todo o resto é acessório ou fetiche, deambulações em torno do nada, com maiores ou menores contradições. Desde a memória da pele (com ou sem a metáfora da “Rosa Tatuada”) aos estragos que o desejo possa imprimir numa alma permeável, no fim esta palavra é fonte e foz, nascente e desembocadouro.

11/03/2007

nº 60




Lançado em outro deserto, pela prestidigitação
de uns olhos, talvez agora mais deserto
pela ausência de corpos, sem a ilusão
do calor da pele contra a pele úmida. “Sossega, apara
o maremoto, a parada aqui
é pós-moderna , cara
”,ela disse, logo pra você
que odiava esta palavra tão cheia de requintes
como a crueldade, a mesma
com que avançava em riste, sedento,
de encontro a moinhos trêmulos
e febris só pra ver se, enfim,
algum deles, qualquer um, despedaçava
a sua carne e a alma ia embora
de roldão.


(das Notas Marginais).

Pro dia nascer feliz

O que me vem a cabeça é que a causa está no período em que não se podia falar. Podia-se pensar, mas falar era arriscado. Então, aprendeu-se a não falar e esse não falar tornou-se um ensino. Para tanto, foram esquecidas esperanças, sonhos, desejos. Foram esquecidas estratégias, jeitos de corpo, soluções. E foi esquecida uma capacidade tão especialmente humana, tão somente humana e, por isso, tão nossa: a nossa capacidade de ouvir. A solução está na escuta. E no não egoísmo, na divisão de saberes, na partilha. E é só por isso.

11/02/2007

nº 45




Você segue conectado e traz na agenda
ou nos bolsos 5 ou 6
telefones colhidos ao acaso, no mesmo passo
com que arrancaria flores de canteiros. Atrás
de cada número caminha um corpo que só quer afundar
no próprio espanto,
depois que a chave da língua desenhar códigos de acesso
úmidos
no pergaminho da pele até chegar à orla
do abismo
onde se verte uma primavera líquida
sobre si mesma, sempre
sobre si mesma, no vazio
de qualquer promessa. Não há como dizer isso, tudo
se precipita, mesmo que além dos limites
da pele, em um sobrevoar
de corpos estendidos, a memória devastada se arvore
na guarda do silêncio. Depois, os trens
que rasgam os subúrbios entre silvos
aportam numa estação
de sombras, carregados
de outros dias
amputados, no bojo reluzente
dos vagões.


(das Notas Marginais)




11/01/2007

LER*

A fachada do hotel neoclássico internacional está ruindo.


No pontiagudo elegante da cidade ao som de vidro espelhado digerido e cagado pessoas andam com as mãos sobre as cabeças:


um tijolo lançado pela fúria do hotel é morte quase certa, ou no melhor dos casos internação de uma semana no Spa Kkhativo.


À sombra dos tijolos matadores costureiras anêmicas comedoras de miojo representam o botão de rosa que inevitavelmente cairá do pano de prato, representam também a lamentação do beija-flor contra a morte precoce da rosa.


Na calçada, com seu guarda-chuva de açougueiro, o síndico com sua roupa preta de jargão publicitário, com os oito óculos escuros e as pupilas dentadas ruminantes afirma que tudo não passa de hotel, estação de trem, reclama um edifício mais sólido.


Ambulantes anunciam tacos de beisebol, porretes de visão infravermelha e muita muita dettera pra você comer domingo de manhã.




* Lesão do Esforço Repetitivo