11/15/2007

Cagaram na tua cabeça (Ou Síndrome Coletiva do Poder)

Por causa do seu significado característico, preciso ainda fazer algumas observações sobre a pergunta mencionada: 'Por que o senhor não caga?', por menos decente que seja o tema de que sou constrangido a tratar. Como tudo o mais no meu corpo, também a necessidade de evacuação é provocada por milagre; isso acontece da seguinte maneira: as fezes são empurradas para a frente (às vezes também de novo para trás) e, quando, em conseqüência da evacuação já efetuada, não há mais material suficiente, lambuza-se o orifício do meu traseiro com os poucos resíduos do conteúdo intestinal. Trata-se de um milagre do deus superior, que se repete pelo menos muitas dúzias de vezes por dia. A isso se liga a idéia quase inconcebível para o homem e só explicável pelo completo desconhecimento que Deus tem do homem vivo como organismo - a idéia de que o cagar seja, de certo modo, o último recurso, isto é, de que por meio do milagre de cagar se atinja o objetivo da destruição do entendimento e se torne possível uma retirada definitiva dos raios. Para chegar aos fundamentos da origem dessa idéia, parece-me necessário pensar na existência de um equívoco com relação ao significado simbólico do ato de evacuar, ou seja: quem chegou a ter uma relação correspondente à minha com os raios divinos, de certo modo está justificado a cagar sobre o mundo inteiro.

Mas ao mesmo tempo se revela toda a perfídia da política que se seguiu em relação a mim. Quase toda vez que se provoca em mim, por milagre, a necessidade de evacuar, envia-se – estimulando os nervos da pessoa em questão – uma outra pessoa do meu ambiente para me impedir de evacuar; esse é um fenômeno que durante anos observei um sem número (milhares) de vezes e de um modo tão regular que fica eliminada a idéia de casualidade. Então, à pergunta 'por que o senhor não caga?' me é dada a brilhante resposta: 'porque sou burro, algo assim'. A pena quase se recusa a escrever o nome absurdo, segundo o qual Deus, em sua cegueira, causado na realidade por seu desconhecimento da natureza humana, chega ao ponto de supor que possa haver um homem que, por burrice, não consiga cagar – coisa que qualquer animal consegue. Quando, então, no caso de uma necessidade, efetivamente evacuo – para o que me sirvo de um balde, dado que quase sempre encontro o banheiro ocupado -, isso se associa toda vez a intensíssimo desdobramento da volúpia da alma. A libertação da pressão provocada pela presença de fezes no intestino tem como conseqüência um intenso bem-estar, que é provocado aos nervos da volúpia, o mesmo acontece no ato de urinar. Por esse motivo, sempre e sem exceção, os raios ficavam unidos durante o ato de evacuar e urinar; e, justamente por essa mesmo razão, toda vez que me disponho a essas funções naturais procura-se, embora quase sempre em vão, desfazer por milagre o impulso à evacuação e à micção.”


(Daniel Paul Schreber, em Memórias de um doente dos nervos)


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