11/30/2007

Navio Manaus

O texto que segue é história, nada de literatura. Nele investigo, a partir de uma montagem sobre dois diários de viagem (O Turista Aprendiz e Memórias do Cárcere), o significado do Navio Manaus para o Brasil contemporâneo. Há a base factual, comprovada de acordo com os mais rigorosos métodos positivistas, de que Mário de Andrade e Graciliano Ramos tomaram o mesmo navio (o Manaus). O primeiro foi em busca do "Brasil autêntico" nos idos de 1920. O segundo foi levado sob a acusação de "inimigo da brasilidade". As duas viagens consagraram os dois escritores (cada um à sua maneira). Há quem acredite que a história é o Império da Conciliação.

Apenas justapus trechos dos dois diários, o que, diga-se de passagem, foi muito fácil: eles se encaixaram direitinho. E não se engane: não há aqui a menor sombra de pós-modernismo, desde o século XIX a história repousa como uma sanguessuga sobre a literatura.


Mário de Andrade Graciliano Ramos


Não é injustiça ser feliz.

A tarde caía, havia luzes.

Os ventos varriam o Recôncavo, toldados por espesso nevoeiro:

chispando água e mar, uma escuridão branca.

O céu cinzado era uma nuvem só. Detive-me,
e a lâmina espetaculosa da cidade, piscando os olhos,
se aconchegava numa palidez indiferente, tentando habituar a vista.

Um sol antigeográfico tropicalizava. Via-me no fundo de um poço.
A boca-da-noite batia na chapa da cidade, enxergava estrelas altas,
S. Salvador se torcia toda em rostos curiosos,
gozando a luz que é dela, onde se aglomeravam polícias
com muita mansidão.

Era como se fôssemos ninguém-jamais-não-conseguirá, gado, e nos empurrassem,
aqueles rosas doirados, pra dentro de um banheiro carrapaticida.

Aqueles azuis de Virgem Maria - não podíamos recuar -
aqueles amarelos de areia esturricada obrigavam-nos ao mergulho.

Cor dos anos, simples rebanho, apenas.
Cor de séculos, rebanho gafento necessitando creolina,
montados uns sobre os outros...

Tentei sondar a bruma por riba do farol de Amaralina, cheia de trevas luminosas.
Trepava no paredão do morro (idéia absurda)
um magote de coqueiros brincalhões (que me parece razoável)
em surdina, gritando nas trevas luminosas:


Olha o navio!

Olha o navio!

Um comentário:

Aldemar Norek disse...

Tudo bem, não é literatura (?)....
Mas diários e cartas são um material dos bons, não só para a História.
abração.
aldemar