11/01/2007

LER*

A fachada do hotel neoclássico internacional está ruindo.


No pontiagudo elegante da cidade ao som de vidro espelhado digerido e cagado pessoas andam com as mãos sobre as cabeças:


um tijolo lançado pela fúria do hotel é morte quase certa, ou no melhor dos casos internação de uma semana no Spa Kkhativo.


À sombra dos tijolos matadores costureiras anêmicas comedoras de miojo representam o botão de rosa que inevitavelmente cairá do pano de prato, representam também a lamentação do beija-flor contra a morte precoce da rosa.


Na calçada, com seu guarda-chuva de açougueiro, o síndico com sua roupa preta de jargão publicitário, com os oito óculos escuros e as pupilas dentadas ruminantes afirma que tudo não passa de hotel, estação de trem, reclama um edifício mais sólido.


Ambulantes anunciam tacos de beisebol, porretes de visão infravermelha e muita muita dettera pra você comer domingo de manhã.




* Lesão do Esforço Repetitivo

4 comentários:

Aldemar Norek disse...

Daniel,
acho que este seu poema captura umas coisas que acho muito interessantes (não boas, só interessantes) em que também tenho pensado:
- o mundo hoje é neoclássico, até a doideira é neoclássica, assim como a pretensa vanguarda.
- a arquitetura não serve pra nada.
- todo mundo quer ser o Síndico desta merda.
- o máximo que as costureiras fazem é sair na Ala das Baianas da Unidos da Arte, ou então improvisam performances em tudo duvidosas, onde o sentido da agulha e da linha, de cerzir, não surte mais efeito e as coisas ficam mesmo esgarçadas.
- parece que a rosa morreu mesmo e nem adianta o beija-flor chorar. Apesar disso pode ser bom acreditar num certo grau de transcendência, que possa ter a tal da alma das coisas (e das pessoas) surfando por cima e a rosa possa virar outra coisa e resgate o que sobrar.
- se é assim, pode valer a pena continuar empunhando agulha e linha.

abração

Aldemar Norek disse...

Me lembrei agora um poema do Pessoa que também tem alguma coisa com isto:
"grandes são os desertos e tudo é deserto/ Não são algumas toneladas de pedras e tijolos ao alto que disfarçam o tal deserto que é tudo".
Falei de ouvido, deve ter erro aí.
abração.

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

quanto ao "não servir pra nada", pra mim sempre foi um dos maiores elogios. as coisas que não servem pra nada quase sempre são as decisivas na vida.

não me lembro deste poema aí do Pessoa, vou procurar porque tenho me interessado por esta questão do deserto: vidas secas, essas coisas. e como não podia deixar de ser: o problema do lobisomem, Baleia, a raposa do Ninho de Cobras e outros bichos-gente. Tudo isso contra o pano de fundo Papai Getúlio, em frente ao túmulo em que até o Lula foi chorar. Mistérios da história...

na quarta dei uma aula sobre a primeira parte das Memórias do Subsolo, do Dostoievski. Aliás, junto com um texto muito legal pra história do urbanismo: Carl Schorske. Viena Fin de siecle.

O homem do subsolo diz: vocês podem me dizer que vivem no Palácio de Cristal (sabe o lance do Palácio de Cristal, na Exposição Universal de Londres?), mas pra mim o "vosso" Palácio não passa de um Galinheiro. e é isso porque eu quero e pronto. O argumento é: sou tão arbitrário quanto vocês, mas pelo menos admito isso. Não faço de conta que estou fazendo o jogo da história universal. Ele não fica preso ao cinismo, porque no fundo afirma a liberdade, a dignidade, a autenticidade do Não, da potencialidade do Não. Está além do ressentimento e da auto-ajuda.

é por aí, por aí pra mim história, literatura, livros e internet vivem se misturando nessa mensagem sem pé nem cabeça,


Abraço,

Daniel.

Aldemar Norek disse...

Então, Daniel.
Mas quando eu falei que a arquitetura não serve pra nada é justamente pelo seu desejo do inverso, de servir, de ter um fim útil (a velha discussão entre funcionalismo e formalismo), e seu desejo (não declarado nos discursos teóricos, embora tão aparente como uma fratura exposta) de servir ao capital, de fazer o jogo do capital, de ser auxiliar da reificação, de ser cenário disso tudo aí. É justamente aí que ela não serve pra nada. Já a poesia, ela não, por não servir pra nada - e não servir a ninguém - ela é livre e se torna aquilo que faz a diferença. Tem aquele conto, acho que do Chuang Tzu, que fala da utilidade e reduz o útil à porção de terra sob a planta dos pés, que é o mínimo útil pra uma pessoa estar de pé. Todo o inútil que cerca o útil é que lhe confere importância, beleza, sentido. Daí o sentido estar no inútil, na inutilidade. Fecho contigo.

Tenho a mesma fascinação pelo deserto, embora o meu seja menos histórico, fique apenas na onda da metafísica. A sacada do Pessoa foi grande, pq o mundo se tornou mesmo um grande deserto, e o deserto invadiu a gente por dentro - daí a luta é contra o desertto dentro e fora de você, por todo lado.

Palácio de Cristal, Exposição de Londres, a gente lê/vê isso em hist. da arq. Mas a síntese só se faz depois, fora da mediocridade da academia (leia-se ufrj). Acredita que em 5 anos de faculdade (que pra mim, pq trabalhava foram 8) nunca sequer mencionaram os nomes de Hélio Oiticica e Lygia Clark, e seus questionamentos estéticos e filosóficos? Neoconcretismo também zero. Ficavam na discussão do (nascente) estilo pós-moderno (arhg, vou vomitar....).

é isso
abração