O tempo é passagem
entre um lugar e outro, trânsito entre uma pessoa e outra. As pedras que
sustentam a ponte no vazio são agora.
Mas não existem dois agoras que se toquem. É uma impossibilidade psíquica, histórica e, antes de tudo, física. Quero
morrer envenenado de comer um polvo cru. Ser enterrado com o rosto voltado para
baixo, porque com o tempo o que está abaixo virá a ser acima, como um cão
celestial.
Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
12/28/2014
12/09/2014
Quando o espaço tiver
minguado em seu próprio espalhar-se que dilacera proximidades, pode ser que nasça
aquilo que será o sem-perguntas e sem-respostas, a rememoração absoluta do anjo
futuro que apenas sonhará à beira de um buraco-negro. Posso até acreditar que essa
divindade que nada cria e apenas revisita o que houve pode se deter num instante,
um lapso em torno de toda engrenagem ao redor, passando do mais ínfimo ao
imensuravelmente imenso em suas articulações, como um teatro nô da história do
universo. Isso se deteria no momento em que uma suave silhueta se revelou sob
nuvens diante de uma cerca enferrujada, no entardecer que ora eu via em roxo
ora em verde, a face desenhada em cinza ao contrário sobre a paisagem cinzenta,
todas as cores se depurando no clarão corrosivo da implosão da atmosfera. E esse
último suspiro da natureza seria lindo – e assustadoramente solitário.
11/30/2014
Nasci sem olhos
sem língua
com uma cascata de
nadas pulsando
no sangue
vejo o mundo por olhos
alheios
canto numa língua que
herdamos
e sentidos catados nas
ruas
caveiras programadas
à sombra da noite
transparente.
*
Calçamento de pedras
desoladas
da lua
costura de vozes e
sombras
nos santos surdos de
pedra –
onde falamos.
*
Atrás dos cogumelos de
madeira
molhados de sereno –
uma silhueta sem rosto
vela meu sono.
11/20/2014
NOITE com LEONOR SCLIAR-CABRAL
NOITE
Plena de enigmas, noite de presságios.
Insone abri a porta do jardim:
nas moitas os duendes que se amavam
emudeceram.
Um aroma de pólen, cio e néctar
impregna a mucilagem sob a grama
que as mãos vazias, ávidas maceram
até o cansaço.
Estremece ao luar a goiabeira
os frutos caem podres pelo chão,
mole-molência rubra sob os pés
a esmagá-los.
E o corpo rola exangue pela grama
no declive de pedras e de folhas,
mistura de húmus orvalhado e sangue,
só de prazer.
(Leonor Scliar-Cabral, in De Senectute EROTICA
Imagem: foto de Anderson Dantas com Leonor, na noite de lançamento do Suplemento Especial de Poesia Ô Catarina em 14 Novembro 2014)
Texto e Imagem cedidos pelo blog do Autor, ÁLBUM ZÚTICO
11/10/2014
LANÇAMENTO ESPECIAL de POESIA SUPLEMENTO CULTURAL Ô CATARINA!
Convido a todos para o Lançamento Especial de Poesia do Suplemento Cultural Ô
Catarina!
Os melhores poetas de Santa Catarina estarão presentes!!
Abraços!!
11/06/2014
[...]
/ Mar Becker /
eu quero um cavalo que se dissipe no ar e em cuja pelagem anoiteçam os sete segredos do meu hino de melancolias
em tudo, meu lugar nenhum. meu próprio cavalo azul
que tem sido sistematicamente chamado pelas bocas de uma legião de desaparecimentos de crianças, homens e mulheres
se tudo eu peço a esse deus em que não acredito
e que nunca me disse "levanta e anda"
e que nunca me disse que será meu o reino dos céus
eu mesma digo
pela minha boca, no fundo das bocas da distância em que estou de mim. exílio. no espelho
o olho do meu cavalo azul que não tenho. sem nome
11/01/2014
Noite passada fui tragado
por um espelho
Alguma coisa de líquens vampiros naquelas margens,
De seres desclassificados na sedimentação do rancor
Como se do outro lado do espelho
Da vida, imerso em nada mordente de musgo,
Meu sangue se esverdeasse todo em transparência
À intensidade anímica de um porco espinho.
Não há reflexo que não vomite monstros
No sonho da razão.
Nada de palavras que não arrombem simetrias.
Você não vai se reconhecer.
*
Você ainda pensa
que estão te esperando
Mensageiros, espiões, ou todos aqueles
Que foram massacrados no caminho.
Você acredita que o tempo é todo seu.
O tempo, essa vertigem de arames enrodilhados
No vazio deixado por deus quando suicidou-se em universo
Conheceria bem os seus projetos.
Você ainda supõe cautela e justiça
Rumo a um final de sabedoria
E que toda premeditação um dia será premiada.
Você, com essa coroa de punhais caindo da janela
Você, em cujo peito se anuncia uma constelação
De vagalumes alucinados
Gritando seu nome, o seu nome podre, na surdez pétrea do
mundo.
10/07/2014
9/14/2014
Como matar a criança
que nunca nasceu?
Nos perguntávamos.
Em meio à seca ela subia montanhas
Trazendo água para nossa sede
Com a pele toda trincada.
Como é possível matar essa criança?
Ela incomoda, extemporânea,
Mas do vazio de seus olhos entorpecidos
Vinha
uma luz que aplacava o breu
De
nossos corações sugados de tanta gravidade.
Como
mataremos a criança inexistente?
E
ela estava morta.
9/02/2014
Em memória à esquizofrenia de Kafka
Um território não pertence a quem nele cava
Amacia a terra severa e fecunda
Até que os dedos se tornem raízes.
Mas aos guardiões de olhos mortiços nas suas fronteiras.
*
Em memória à
epilepsia de Nietzsche
Vê-se uma bela escada
Pavimentada com corpos de jovens mortos
E fuzilamentos simulados – a lâmpada
É de eletrochoque altruísta.
*
Em memória à paranoia de Kerouac
Uma figura de Big Sur
Queimada e jogada num cinzeiro.
8/24/2014
Como são gentis os
mortos,
Principalmente os
jovens
Os que morreram antes
de qualquer mácula.
Como são doces as
lágrimas
De auditório por todos
aqueles que morreram
Comprovando nossa perdida
ingenuidade.
Mas não quando seus
ossos
Emergem na violência
das ondas.
Não quando seus cabelos
Brotam nos jardins.
Não quando seus gritos
Atravessam larvas nas
paredes.
Não quando pombas de
olhos vermelhos
Pousam sobre os filtros
que limpam nossas águas.
Sempre os mesmos.
8/10/2014
na cidade industrial
o
anjo se arrasta
pela
calçada e sonha com a ruína
da
cidade industrial enquanto mede
com
os olhos vermelhos a distância
e
a trajetória do voo impossível
até
o Paraíso onde queima a sua alma
inexistente
como o azul da voz que ecoa
em
sua asa amputada. A ponte
que
leva pra dentro tem chão de vidro
moído
e ele escreve com passos e sangue
as
palavras que suas asas riscariam
nos
céus – é mais fácil medir o chão
imaginário
e por isso sempre
mais
letal, mas não se deve olhar
pra
trás e tentar ler as palavras
cor
de vinho que vazaram sobre o pavimento
feroz
porque a asa
que
sobrou arrasta suas penas e borra
a
tinta antes que o sentido
evapore.
Entre
despejos,
catástrofes e flores febris, a asa
solitária
é um aleijão, inútil
como poemas que cicatrizam
na
pele da memória enquanto
anoitece,
iluminuras
que
acendem com seus códigos
as
luzes das avenidas.
7/27/2014
Anotações de um suicídio não cometido
É meia verdade supor que uma estrela não sente a dor de seu
próprio apagamento.
Retirar-se da nebulosa de mel azul acolhedor para o espaço
infinitamente aberto
de dentro, na própria estrela.
As flores e animais miraculosos ainda caminham e arranham seu
dorso inerte, anestesiado, a poeira vermelha, as nuvens ácidas, são imagens de
poeira vermelha e nuvens ácidas, a estrela é o rastro meramente mental de uma
dor que se apaga –
ainda assim, é um erro dizer que a dor inexiste na estrela que volta sua luz
para dentro de seu breu mais profundo, o próprio escuro de seu autoeclipse que
ela mesma cava, cava e não há lugar
não há lugar
para uma estrela dessas num tosco planetário plástico de
material adaptável:
gás de cozinha,
gás de cozinha
para dentro dos pulmões.
*
Cometas gritam meu nome, não esse que vocês conhecem,
mas um nome podre. Eles
passam a noite se espatifando contra a janela, movidos por uma atração
irresistível
e
gritam e brilham quando se quebram no vidro, querendo invadir meu quarto,
assassinos. Eles nascem no espaço mais distante, caindo da boca de uma estátua
de pedra. A estátua vagueia depois de todas as constelações, braço estendido
apontando para o mar crônico depois do além-ocidente: não dê um passo além
daqui, desse mar de gás.
*
O sentimento aziago rasgou o céu com sua longa cabeleira de
fogo. Minúsculas, pedras de gelo caem atiçadas por ácido sal – o sangue arde
como limão sobre feridas. Ver alguém esmurrar a mesa gritando a palavra amor.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos,
famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da
morte. Eu sobrevivi, mas por puro medo do nada. Existe um sono muito profundo
nos isolando dentro da vida. Sonho constantemente que percorro labirintos,
espaços que se desdobram, enovelam-se, é como nadar em águas de breu entre
corredores fracamente iluminados.
Os seres de outros planetas que trazemos por dentro se
parecem com peixes e assim é você que me lê incognitamente em meu pensamento:
uma desilusão que puxa o ar inútil à beira-mar, pelas guelras. Não estou aqui
com a finalidade de ser reconhecível, não acredito em padrões de
verossimilhança. Portanto, acenda uma vela bem perto dos meus olhos, como
faziam os legistas antigos que moravam em castelos. Ponha-se à escuta, mas
cuidado com o tentáculo que procura se infiltrar, atravessando o caminho que
vai da matéria orgânica do teu ouvido ao nosso coração mais abstrato. Não
chore, não lamente o lodo que se acumula nas paredes. Despeça-se, despedace em
si esse planetário inútil.
Vamos beber do vinho verde de tantos sonhos desfeitos, apenas
porque a vida é rude demais. Alucinarei alguns momentos perfeitos, alguém
velando meu sono, fechando a porta cuidadosamente, descendo a escada, levando,
num aquário, peixes tão pequenos e brilhantes quanto sonhos mortos petrificados
em palavras.
*
Liberte-me. Não é difícil, é tão simples quanto autorizar uma
eutanásia: tudo em mim é corroído. Fora a dor constante, sou eu por onde
respiro. Noite passada um demônio, matéria-prima de janelas fechadas por dentro
do pavor, lambia minha boca com sua língua áspera de cachorro. Eu torcia meus
braços de pano e sombras escorriam deles, gotejando medo. Eu implorava por luz,
eu chamava, inutilmente, pelo auxílio de anjos inexistentes, mesmo que feitos
no óleo de automóveis. Contra a minha vontade, meu rosto fazia caretas de ódio.
Convença-se: não tenho nada a perder.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos,
famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da
morte. Ele sobreviveu, mas por puro medo do nada. Venho tendo momentos
horríveis, os piores de uma vida de marionete. Nem são momentos, para ser mais
preciso. O tempo é um mar coagulado, crônico, que nos comprime. Se estamos
vivos, é apenas uma questão de método. Você não sente? O perfume feito de
butano e propano? O mar que anestesia para tudo, menos a dor, infiltra-se pelas
veias e não há alívio no fato de as ruas refletirem a cidade – invertida numa
topografia de ponta-cabeça onde asas de um anjo poderiam se formar no traçado
do óleo despejado pelos carros, onde alguém te diz que uma desilusão verdadeira
é melhor do que qualquer falsificação.
Mas é mentira dizer que a morte de uma estrela é indolor.
Certamente, o conselheiro não conhece o desespero, o verdadeiro e franco
desespero – se conhecesse, saberia que a ilusão mais tosca (como a de ver anjos
no óleo despejado pelos carros) é preferível a todas as geometrias daqueles
que, com réguas a tiracolo, ensinaram que a natureza é mero acúmulo casual de
pedras e gás.
Quer-se ver de perto alguém que não seja consumido como um
fogo frio, uma luz voltada para dentro de si mesma e por isso mais escura que o
poço mais profundo, que não se esvaia para dentro de si mesmo como a matéria
podre que se acende num fogo-fátuo parteiro de cometas com suas mensagens
sinistras de guerras banais e sempre as mesmas.
*
Nada é mais cômodo do que ser amado e não ter que amar em
troca. É como jamais ser garçom, nunca de núncaras, diria a estátua pichada do
drummond. Não ter que acreditar no que se diz, nem mesmo ao ponto de ter que se
duvidar se se acredita no que se diz. Porque o que nos despedaça nas palavras é
a crença, o instante rasga o véu como um relâmpago e nem somos deuses para
tanto, quando qualquer discurso é uma sentença. Prometer-se a si mesmo que só
serão feitas promessas vagas, como atravessar a rua com um folheto de horóscopo
a tiracolo. Um homem pálido caminhava sob as chamas esverdeadas dos castiçais
entre paredes de lodo, luas eram desenhadas no teto do apartamento, retratos de
cavernas e canais subterrâneos mastigados davam ensejo a calendários servidos
frios na hora do vinagre familiar. Chapéus eram jogados pelas janelas e o sol
esmiuçado se cozinhava em banho-maria, vomitando cometas e aves de mau
agouro.
*
Da matéria viscosa e seca dos sonhos desfeitos de humanos e
alienígenas, emanam cometas. A pele de cristal dos céus também infecciona e
grita heresias contra o sol. Mas de seu vermelho sanguíneo dão saltos,
dançando, tranças brilhantes, acesas, que levam as mentes desesperadas em nova
viagem pelo espaço vazio. Perto disso (da imaginação pólvora cósmica deflagrada
em desejo) como são pálidas as promessas dos fogos de artifício. Quem não curte
a cena é o Rei usurpador cuja metade do corpo é podre e que por isso clama por
contemplação desinteressada. O Rei corre aos seus aposentos em busca de sua
arma de fogo. Tudo menos ouvir as vozes desenhadas no rastro ardente que canta
o amor num pontilhado de tranças que atravessam o céu.
Dar tiros em cometas: é a tarefa de quem não acredita no amor
e assim fica congelada a imagem do Rei cuja metade do corpo é podre: de pé na
varanda, apontando seu revolver contra o céu.
*
E se eu, como esse Rei usurpador, tivesse o seu revólver? A
facilidade então seria uma solução mais simples, dando forma definitiva à
realidade. Eu diria para ele, Rei podre, atire em meu próprio coração que todos
os cometas desaparecem como que por encanto. Eu não estaria escrevendo isso e
tendo que refazer meu planetário com estas palavras, à procura da matéria-prima
luminosa da vida.
7/19/2014
Agora,
rápido! não tem ninguém
olhando
é o custo benefício de toda porta
excessivamente
pesada
deixa a palavra na ponta da língua
um peixe
ao anzol é a chave
e uma hora desmaia
como respira por fora de tudo,
alheio ao bom senso
e cava mais fundo a terra seca e
vermelha
das minhas mãos
quem sabe outro planeta de ossos
partidos
e trinca a memória
se a boca fosse detector de mentira
às avessas.
sempre desconfiei de alienígenas
entre tantos bichos e afetos
esquisitos flutuando por aí, no
sangue
na água salgada,
e certa poeira de romantismo na
contramão
do ponto sem nó
e retorno.
Agora chega
que estão olhando pra gente
faz de conta que não se conhece.
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