12/28/2014

O tempo é passagem entre um lugar e outro, trânsito entre uma pessoa e outra. As pedras que sustentam a ponte no vazio são agora. Mas não existem dois agoras que se toquem. É uma impossibilidade psíquica, histórica e, antes de tudo, física. Quero morrer envenenado de comer um polvo cru. Ser enterrado com o rosto voltado para baixo, porque com o tempo o que está abaixo virá a ser acima, como um cão celestial.  

12/09/2014

Quando o espaço tiver minguado em seu próprio espalhar-se que dilacera proximidades, pode ser que nasça aquilo que será o sem-perguntas e sem-respostas, a rememoração absoluta do anjo futuro que apenas sonhará à beira de um buraco-negro. Posso até acreditar que essa divindade que nada cria e apenas revisita o que houve pode se deter num instante, um lapso em torno de toda engrenagem ao redor, passando do mais ínfimo ao imensuravelmente imenso em suas articulações, como um teatro nô da história do universo. Isso se deteria no momento em que uma suave silhueta se revelou sob nuvens diante de uma cerca enferrujada, no entardecer que ora eu via em roxo ora em verde, a face desenhada em cinza ao contrário sobre a paisagem cinzenta, todas as cores se depurando no clarão corrosivo da implosão da atmosfera. E esse último suspiro da natureza seria lindo – e assustadoramente solitário. 


11/30/2014

Nasci sem olhos
sem língua
com uma cascata de nadas pulsando
no sangue

vejo o mundo por olhos alheios
canto numa língua que herdamos
e sentidos catados nas ruas

caveiras programadas
à sombra da noite transparente.

*
Calçamento de pedras desoladas
da lua
costura de vozes e sombras
nos santos surdos de pedra –

onde falamos.

*
Atrás dos cogumelos de madeira
molhados de sereno –
uma silhueta sem rosto
vela meu sono.










11/20/2014

NOITE com LEONOR SCLIAR-CABRAL















NOITE


Plena de enigmas, noite de presságios.
Insone abri a porta do jardim:
nas moitas os duendes que se amavam
emudeceram.

Um aroma de pólen, cio e néctar
impregna a mucilagem sob a grama
que as mãos vazias, ávidas maceram
até o cansaço.

Estremece ao luar a goiabeira
 os frutos caem podres pelo chão,
mole-molência rubra sob os pés
a esmagá-los.

E o corpo rola exangue pela grama
no declive de pedras e de folhas,
mistura de húmus orvalhado e sangue,
só de prazer.


(Leonor Scliar-Cabral, in De Senectute EROTICA
Imagem: foto de Anderson Dantas com Leonor, na noite de lançamento do Suplemento Especial de Poesia Ô Catarina em 14 Novembro 2014)


Texto e Imagem cedidos pelo blog do Autor, ÁLBUM ZÚTICO

11/10/2014

LANÇAMENTO ESPECIAL de POESIA SUPLEMENTO CULTURAL Ô CATARINA!






































Convido a todos para o Lançamento Especial de Poesia do Suplemento Cultural Ô
Catarina! 

Os melhores poetas de Santa Catarina estarão presentes!!

Abraços!!

11/06/2014

[...]



eu quero um cavalo que se dissipe no ar e em cuja pelagem anoiteçam os sete segredos do meu hino de melancolias

em tudo, meu lugar nenhum. meu próprio cavalo azul

que tem sido sistematicamente chamado pelas bocas de uma legião de desaparecimentos de crianças, homens e mulheres

se tudo eu peço a esse deus em que não acredito

e que nunca me disse "levanta e anda"
e que nunca me disse que será meu o reino dos céus

eu mesma digo

pela minha boca, no fundo das bocas da distância em que estou de mim. exílio. no espelho
o olho do meu cavalo azul que não tenho. sem nome

11/01/2014

Noite passada fui tragado por um espelho
            Alguma coisa de líquens vampiros naquelas margens,
            De seres desclassificados na sedimentação do rancor
            Como se do outro lado do espelho
            Da vida, imerso em nada mordente de musgo,
            Meu sangue se esverdeasse todo em transparência
            À intensidade anímica de um porco espinho.

            Não há reflexo que não vomite monstros
No sonho da razão.

Nada de palavras que não arrombem simetrias.

            Você não vai se reconhecer.

            *
            Você ainda pensa que estão te esperando
            Mensageiros, espiões, ou todos aqueles
            Que foram massacrados no caminho.

            Você acredita que o tempo é todo seu.
            O tempo, essa vertigem de arames enrodilhados
            No vazio deixado por deus quando suicidou-se em universo         
            Conheceria bem os seus projetos.

            Você ainda supõe cautela e justiça
            Rumo a um final de sabedoria
            E que toda premeditação um dia será premiada.

            Você, com essa coroa de punhais caindo da janela
            Você, em cujo peito se anuncia uma constelação
            De vagalumes alucinados
            Gritando seu nome, o seu nome podre, na surdez pétrea do mundo.

            

10/07/2014

A luta de um corpo frágil contra a parede.
            O medo, sobretudo
            Apreciamos um delírio confortável.

            Um deus mentiu sobre si mesmo
            E criou o universo?

            Você me avisou que no futuro eu odiaria.

            Eu disse que era impossível,

            Mas estava errado.

9/14/2014

Como matar a criança que nunca nasceu?
            Nos perguntávamos.

            Em meio à seca ela subia montanhas
            Trazendo água para nossa sede
            Com a pele toda trincada.

            Como é possível matar essa criança?
            Ela incomoda, extemporânea,
            Mas do vazio de seus olhos entorpecidos
                        Vinha uma luz que aplacava o breu
                        De nossos corações sugados de tanta gravidade.

                        Como mataremos a criança inexistente?

                        E ela estava morta.
           


9/02/2014

Em memória à esquizofrenia de Kafka
            Um território não pertence a quem nele cava
            Amacia a terra severa e fecunda
            Até que os dedos se tornem raízes.
            Mas aos guardiões de olhos mortiços nas suas fronteiras.
            *
            Em memória à epilepsia de Nietzsche
            Vê-se uma bela escada
            Pavimentada com corpos de jovens mortos
            E fuzilamentos simulados – a lâmpada
            É de eletrochoque altruísta.
            *
            Em memória à paranoia de Kerouac
            Uma figura de Big Sur
            Queimada e jogada num cinzeiro.












8/24/2014

Como são gentis os mortos,
Principalmente os jovens

Os que morreram antes de qualquer mácula.

Como são doces as lágrimas
De auditório por todos aqueles que morreram
Comprovando nossa perdida ingenuidade.

Mas não quando seus ossos
Emergem na violência das ondas.

Não quando seus cabelos
Brotam nos jardins.

Não quando seus gritos
Atravessam larvas nas paredes.

Não quando pombas de olhos vermelhos
Pousam sobre os filtros que limpam nossas águas.

Sempre os mesmos.

8/10/2014

na cidade industrial



o anjo se arrasta
pela calçada e sonha com a ruína
da cidade industrial enquanto mede
com os olhos vermelhos a distância
e a trajetória do voo impossível
até o Paraíso onde queima a sua alma
inexistente como o azul da voz que ecoa
em sua asa amputada. A ponte
que leva pra dentro tem chão de vidro
moído e ele escreve com passos e sangue
as palavras que suas asas riscariam
nos céus – é mais fácil medir o chão
imaginário e por isso sempre
mais letal, mas não se deve olhar
pra trás e tentar ler as palavras
cor de vinho que vazaram sobre o pavimento
feroz porque a asa
que sobrou arrasta suas penas e borra
a tinta antes que o sentido
evapore. Entre
despejos, catástrofes e flores febris, a asa
solitária é um aleijão, inútil
como  poemas que cicatrizam
na pele da memória enquanto
anoitece, iluminuras
que acendem com seus códigos
as luzes das avenidas.

7/27/2014

Anotações de um suicídio não cometido



É meia verdade supor que uma estrela não sente a dor de seu próprio apagamento.
Retirar-se da nebulosa de mel azul acolhedor para o espaço infinitamente aberto
            de dentro, na própria estrela.

As flores e animais miraculosos ainda caminham e arranham seu dorso inerte, anestesiado, a poeira vermelha, as nuvens ácidas, são imagens de poeira vermelha e nuvens ácidas, a estrela é o rastro meramente mental de uma dor que se apaga –

            ainda assim, é um erro dizer que a dor inexiste na estrela que volta sua luz para dentro de seu breu mais profundo, o próprio escuro de seu autoeclipse que ela mesma cava, cava e não há lugar

não há lugar

para uma estrela dessas num tosco planetário plástico de material adaptável:

gás de cozinha,
gás de cozinha
para dentro dos pulmões.

*
Cometas gritam meu nome, não esse que vocês conhecem, mas um nome podre. Eles passam a noite se espatifando contra a janela, movidos por uma atração irresistível
e gritam e brilham quando se quebram no vidro, querendo invadir meu quarto, assassinos. Eles nascem no espaço mais distante, caindo da boca de uma estátua de pedra. A estátua vagueia depois de todas as constelações, braço estendido apontando para o mar crônico depois do além-ocidente: não dê um passo além daqui, desse mar de gás. 


*

O sentimento aziago rasgou o céu com sua longa cabeleira de fogo. Minúsculas, pedras de gelo caem atiçadas por ácido sal – o sangue arde como limão sobre feridas. Ver alguém esmurrar a mesa gritando a palavra amor.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos, famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da morte. Eu sobrevivi, mas por puro medo do nada. Existe um sono muito profundo nos isolando dentro da vida. Sonho constantemente que percorro labirintos, espaços que se desdobram, enovelam-se, é como nadar em águas de breu entre corredores fracamente iluminados.
Os seres de outros planetas que trazemos por dentro se parecem com peixes e assim é você que me lê incognitamente em meu pensamento: uma desilusão que puxa o ar inútil à beira-mar, pelas guelras. Não estou aqui com a finalidade de ser reconhecível, não acredito em padrões de verossimilhança. Portanto, acenda uma vela bem perto dos meus olhos, como faziam os legistas antigos que moravam em castelos. Ponha-se à escuta, mas cuidado com o tentáculo que procura se infiltrar, atravessando o caminho que vai da matéria orgânica do teu ouvido ao nosso coração mais abstrato. Não chore, não lamente o lodo que se acumula nas paredes. Despeça-se, despedace em si esse planetário inútil.
Vamos beber do vinho verde de tantos sonhos desfeitos, apenas porque a vida é rude demais. Alucinarei alguns momentos perfeitos, alguém velando meu sono, fechando a porta cuidadosamente, descendo a escada, levando, num aquário, peixes tão pequenos e brilhantes quanto sonhos mortos petrificados em palavras.   

            *
Liberte-me. Não é difícil, é tão simples quanto autorizar uma eutanásia: tudo em mim é corroído. Fora a dor constante, sou eu por onde respiro. Noite passada um demônio, matéria-prima de janelas fechadas por dentro do pavor, lambia minha boca com sua língua áspera de cachorro. Eu torcia meus braços de pano e sombras escorriam deles, gotejando medo. Eu implorava por luz, eu chamava, inutilmente, pelo auxílio de anjos inexistentes, mesmo que feitos no óleo de automóveis. Contra a minha vontade, meu rosto fazia caretas de ódio. Convença-se: não tenho nada a perder.  

            *
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos, famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da morte. Ele sobreviveu, mas por puro medo do nada. Venho tendo momentos horríveis, os piores de uma vida de marionete. Nem são momentos, para ser mais preciso. O tempo é um mar coagulado, crônico, que nos comprime. Se estamos vivos, é apenas uma questão de método. Você não sente? O perfume feito de butano e propano? O mar que anestesia para tudo, menos a dor, infiltra-se pelas veias e não há alívio no fato de as ruas refletirem a cidade – invertida numa topografia de ponta-cabeça onde asas de um anjo poderiam se formar no traçado do óleo despejado pelos carros, onde alguém te diz que uma desilusão verdadeira é melhor do que qualquer falsificação.
Mas é mentira dizer que a morte de uma estrela é indolor. Certamente, o conselheiro não conhece o desespero, o verdadeiro e franco desespero – se conhecesse, saberia que a ilusão mais tosca (como a de ver anjos no óleo despejado pelos carros) é preferível a todas as geometrias daqueles que, com réguas a tiracolo, ensinaram que a natureza é mero acúmulo casual de pedras e gás.
Quer-se ver de perto alguém que não seja consumido como um fogo frio, uma luz voltada para dentro de si mesma e por isso mais escura que o poço mais profundo, que não se esvaia para dentro de si mesmo como a matéria podre que se acende num fogo-fátuo parteiro de cometas com suas mensagens sinistras de guerras banais e sempre as mesmas.  
*
Nada é mais cômodo do que ser amado e não ter que amar em troca. É como jamais ser garçom, nunca de núncaras, diria a estátua pichada do drummond. Não ter que acreditar no que se diz, nem mesmo ao ponto de ter que se duvidar se se acredita no que se diz. Porque o que nos despedaça nas palavras é a crença, o instante rasga o véu como um relâmpago e nem somos deuses para tanto, quando qualquer discurso é uma sentença. Prometer-se a si mesmo que só serão feitas promessas vagas, como atravessar a rua com um folheto de horóscopo a tiracolo. Um homem pálido caminhava sob as chamas esverdeadas dos castiçais entre paredes de lodo, luas eram desenhadas no teto do apartamento, retratos de cavernas e canais subterrâneos mastigados davam ensejo a calendários servidos frios na hora do vinagre familiar. Chapéus eram jogados pelas janelas e o sol esmiuçado se cozinhava em banho-maria, vomitando cometas e aves de mau agouro.   
*
Da matéria viscosa e seca dos sonhos desfeitos de humanos e alienígenas, emanam cometas. A pele de cristal dos céus também infecciona e grita heresias contra o sol. Mas de seu vermelho sanguíneo dão saltos, dançando, tranças brilhantes, acesas, que levam as mentes desesperadas em nova viagem pelo espaço vazio. Perto disso (da imaginação pólvora cósmica deflagrada em desejo) como são pálidas as promessas dos fogos de artifício. Quem não curte a cena é o Rei usurpador cuja metade do corpo é podre e que por isso clama por contemplação desinteressada. O Rei corre aos seus aposentos em busca de sua arma de fogo. Tudo menos ouvir as vozes desenhadas no rastro ardente que canta o amor num pontilhado de tranças que atravessam o céu.
Dar tiros em cometas: é a tarefa de quem não acredita no amor e assim fica congelada a imagem do Rei cuja metade do corpo é podre: de pé na varanda, apontando seu revolver contra o céu.          
*

E se eu, como esse Rei usurpador, tivesse o seu revólver? A facilidade então seria uma solução mais simples, dando forma definitiva à realidade. Eu diria para ele, Rei podre, atire em meu próprio coração que todos os cometas desaparecem como que por encanto. Eu não estaria escrevendo isso e tendo que refazer meu planetário com estas palavras, à procura da matéria-prima luminosa da vida. 


7/19/2014

Agora, rápido! não tem ninguém
            olhando

            é o custo benefício de toda porta excessivamente
            pesada
            deixa a palavra na ponta da língua um peixe
            ao anzol é a chave
            e uma hora desmaia
            como respira por fora de tudo, alheio ao bom senso
            e cava mais fundo a terra seca e vermelha
            das minhas mãos
            quem sabe outro planeta de ossos partidos
            e trinca a memória
            se a boca fosse detector de mentira às avessas.

            sempre desconfiei de alienígenas
            entre tantos bichos e afetos
            esquisitos flutuando por aí, no sangue
            na água salgada,
            e certa poeira de romantismo na contramão
            do ponto sem nó
            e retorno.

            Agora chega
            que estão olhando pra gente
            faz de conta que não se conhece.