12/03/2006

Café

No muro amarelo, desenhado em traços ocultos na mesma cor da tinta do muro, o rosto de um homem usando um chapéu transparente e dentro do chapéu o cérebro imenso de um predador. Ele fala emendando umas palavras nas outras, num tom de voz cada vez mais agudo, ensurdecedor, quer dizer, isso se as pessoas fossem capazes de ouvi-lo, como não são de enxergá-lo, mas nesta hora, a todo momento, o que importa é sua presença, onipresença, unicamp-presença: quando um livro pesado cai no chão, este som agudo, um grito dentro de sua cabeça, grudado na parede quente: é ele quem grita, é ele quem se lamenta, no meio do Café.
E o Café, ah o Café, uma lata de cerveja brilha entre as flores quase mortas, o vento vem vindo vem vindo e cai como um cachorro vadio, um anjo invisível de olhos vermelhos usa um relógio cravejado de dentes, as pessoas se envolvem em teias, apertam as mãos, balançam as pernas, riem, perdem o controle, retomam a estabilidade, dominam a situação, desfazem-se como um emaranhado delicado de raízes, ponha aí: raízes de um abacateiro rompendo o asfalto, por baixo da terra estabelecendo liames ora profundos, ora superficiais, mas sempre ambíguos, indecifráveis como um olhar, um gesto, como uma expectativa, como uma dor trazida de casa, de muito longe, uma dor invisível aos outros, como um sorriso, um resto de calor impreciso, uma alegria que também não apresenta seus motivos.
No Café, as pessoas nunca falam sobre o que estão falando, elas atravessam as palavras como um túnel, como um míssil em câmera lenta rumo ao adversário, mas sobretudo como flores minúsculas, imperceptíveis, trocadas à revelia do rosto amarelo no muro amarelo, flores que sempre se dissipam quando são tocadas, não adianta, nossas mãos são rudes, mesmo quando tecem flores que se desintegram, como o Café que estava abarrotado de gente, e agora está vazio

Agora sim, depois de atravessar este matagal, este arabesco, seja sincero, se não consigo mesmo, que o seja com alguém: você pode vestir a roupa ao avesso, pode morder o chão, pode beber de uma vez o café intragável e bem quente para ver se seus olhos ainda lacrimejam, pode falar de um amor impossível, pode misturar tudo o que leu e não leu, pode jurar de pé junto que não é maluco, só uma coisa você não pode negar, mesmo depois dessa prosa sem nexo, encare

Tudo é banal.

2 comentários:

Masé Lemos disse...

oi daniel\\

eu etiraria do seu poema em prosa toda a parte final depois do porque

acho que perde a força, fica explicativo
a parte anterior já tem força necessaria para impactar-nos sobre "tudo é banal"
talvez enviar antes aluma nesga de conversação banal... ou não ... está bacana

adoro titlos com café

Daniel F disse...

Acho que agora ficou melhor. Ótimas dicas Masé. Também curti o seu Yeahh, Eliana.