12/13/2006

Mazagão (Ao som de Los Mareados)

Advertência: isso não é lirismo, é história (mito). Mazagão foi uma cidade-fortaleza na guerra contra os infiéis. Não deu certo. O Imperador decidiu transferir a cidade, inteira, da África para a Amazônia. Os habitantes não podiam escolher, eram sujeitos ao (súditos). Até que Dona Maria, a Louca, dez anos depois de viagens e de muita escrotidão, decretou: vocês estão livres de Mazagão. Depois disso, deles (os súditos) não se tem mais notícia.


de repente você acorda
há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim
conseguiria dormir
mas de repente você acorda
- puta que pariu
observe o rebanho que mastiga o capim
e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo
rio de pedras polidas fluindo no esquecimento.
- merda, por que sou gente?
você não consegue dormir porque sabe que se esconde
numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,
que se tornou sua prisão desconhecida em que você trafega como um rato
a porra de um rato com memória
a porra de um rato com nome próprio.
a infantaria ainda não foi inventada você tem que se virar
com estes canhões enferrujados e um crucifixo
- fodeu!
eles estão lá fora mais maneiros e manjados que você
desta vez você se fodeu.
você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra
- e só agora te avisaram.
eis o plano de fuga:
o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um
que se foda dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,
o silêncio que se grita foda-se, o Imperador ordena
tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,
guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,
pegue a maldita canoa e saia pela porta minúscula que se insinua
à beira-mar. e não exulte você não vai afundar no Lethes.
você vai é parar no meio de ruínas
numa cidade bolorenta sangrando à virgem que se arrombou
num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,
uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,
a porra de uma cidade fodida é pra onde você vai.
e não se misture com seus habitantes
até nesta merda de mapa você só está de passagem.
eis o plano de fuga.
- e só agora te avisaram.
depois agora você vai se cagar no meio do mar
rumo aos trópicos aqueles mesmos
em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido
lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas)
terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.
- mar, que belo e verde!
só se for na beira da praia, lá dentro
a pura monotonia os dentes da maresia
que absolutamente não canta saltam do verde e liso mar
e ferem seus olhos lambem seus dentes apodrecem sua boca
uma cloaca, lábios de labirintite.
- me fodi de novo.
oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.
finalmente você chega à nova morada:
madeira podre infestação de formigas casas caindo
chuva torrencial medo dos canibais que inexistem
mesmo assim te mordem roem dentro de sua cabeça
e você ainda a preserva, a porra da memória.
- Dona Maria a Louca mudou de idéia
reconhece em você a triste, tristonha marionete nas mãos do destino
esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas
há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.

- e só agora nos avisaram!
- e só agora nos avisaram!

- vulgar monstro delicado, meu irmão!
é preciso agir rápido, aproveitar-se do começo
num ponto qualquer, qualquer incidente serve,
o veto e o decreto de uma Rainha pirada que seja.
esta pode ser a hora de esquecer-se
sempre agora ritualizar-se
destinar-se.


5 comentários:

Eliana Pougy disse...

Caramba, Daniel, isso dá um puta romance!

Daniel F disse...

é sim, também acho. a base já é um livro de história muito bom, o autor é Vidal Laurent - acho que ele é arquiteto, estuda urbanismo. Mazagão tem muito a ver com Brasília, e esse lance de desterritorizalização, e imigração em massa, mas também pode ser lida como metáfora pra (des)subjetivação, e a questão da Soberania, do Poder Soberano. Poucas histórias que conheço são tão ricas. Se eu tivesse ou tiver a competência pra tanto (não tenho) o romance poderia sair. Taí pra quem quiser. O negócio é se concentrar na densidade da narrativa, sem se deixar levar por essa riqueza mítica - assim, no sentido de não fazer "romance de tese" como meu comentário aqui dá a entender.

Masé Lemos disse...

daniel
dou força pra você encaar este romance historico, é projeto pra uns 4 anos, poxa vale a pena, vc escreve muito bem, para de modestia!

Masé Lemos disse...

alias, vc conhece o Nação Criola do José Eduardo Agualusa?

Daniel F disse...

Oi Masé, tudo bem? Não conheço, vou procurar. Não é modéstia (esse vício eu não tenho :) ), Masé, é apenas reconhecimento depois de tentativas que não deram certo - a não ser quando contei com encontros com outra escrita mais criativa, não soube dar densidade a uma trama. Vou pensar no assunto, de todo jeito, porque vale a pena. Acho que não gostaria de escrever um romance histórico, prefiriria manter o motivo histórico, mas com mais liberdade, sem o rigor da pesquisa etc e tal. Os romances históricos que conheço são meio cansativos, aquele esquema naturalista, cronológico, cansa... Sei lá, mas acho que o gênero deve ser mais rico, minha ignorancia vem do fato de eu geralmente evitar filmes, romances históricos. Aliás, quase não tenho livros de história...rs. Um beijo