12/17/2006

Possuído pelo nome


Eu não me lembro
Mas sei que estava lá
No dia da repartição dos nomes
Das parcelas de terra que a cada um caberia
O solo para pisar
E a terra que se reparte em água que se reparte
Em ar que se reparte em fogo que se
Reparte em alma
Que se respira.
Meu nome caiu em mim
Como alguém que cai em si
Ao se apreender no nome doado
Onde antes havia gruta - voz gutural -
Mancha imortal surpreendida
Em traços inscritos em pedra
Que acenderam no corpo o sopro
Criador das imagens que são você
Seu você mais profundo
Abismo tão distante quanto as últimas constelações
Mas que é você, a quimera presa em seus ombros,
O pássaro rosa-azul, de motivos florais nas asas,
O pássaro que absolutamente não canta
Mas salta de seus olhos enquanto você dorme,
Aninha-se nas asas do Simurg.
É com este nome que lhe caiu como uma pedra
Como um soco na boca
Do estômago
Que você se depara no hipermercado
Com a mulher de dentes cinzentos
De quem mastigou cinzas de cigarro o dia inteiro
Usando um chapeuzinho meio caído de lado
E um vestido puído ex-rosa meio azul
Mulher que te observa como Adão a seus animais anônimos
E vê você pegando entre as prateleiras coloridas
Sob a voz que anuncia o melhor ou
Como ser feliz usando o plástico de matéria-prima
Os pacotinhos violeta de ração para os gatos
Sabor carne, sabor frango, sabor salmão
“O mesmo sabor de patê, mas com menos sal”
A bruxa explica.
O mesmo nome no outro
Dia à noite
Vê com você a Sempreverdejante
Mestre que ensina o caminho
Das flores negras presas na sua garganta
Mestre de pele dourada com arabescos de flores
Pele boa de beijar e morder
De Sofia Eterna
Destruidora de homens, destruidora de cidades
Destruidora de navios
Arrebatadora do silêncio, solapadora da auto-suficiência
Com um sorriso
Com um jogo extremo de percussão:
“Esta música infernal”, dizia o capuchinho Cavazzi.

Tudo menos o poeta.


Quero me redimir.

4 comentários:

Aldemar Norek disse...

A atmosfera mística deste poema (e o corte contemporâneo do templo-hipermercado) está bacana.
Gostei do ritmo tbm.
Engraçado que fala-se de pássaro mas na iluminura tem o signo de pisces.
Só vou ter que descobrir quem diabos é Cavazzi....mesmo que nem importe pro poema.

Daniel F disse...

Oi Aldemar,
não sabia do signo de peixes na iluminura. Tem a ver com aquelas leituras sobre sufismo que conversamos: Khadir, ou Khidir e Moises conversando. Moises é a Lei, Khadir é a imaginação criadora, você deve saber né? Cavazzi: essa referencia sei que é muito enigmática, e saber o que segue não é necessário ao poema, penso: um capuchinho italiano que viajou à África no século XVII e deixou uma descrição muito louca. Pra ele, Angola era o Inferno, literalmente. Música africana é um lance muito poderoso.

Aldemar Norek disse...

Cavazzi devia ser um caretão.
Caso contrário se descobriria filho de Ogum (e iniciava um processo de miscigenação). Ou de Oxum, conforme seus gostos...:)Aí era só deixar cair.

Aldemar Norek disse...

Sim, vejo esta imagem como a dos "eus" quer conversam dentro da gente. A Lei e a Imaginação (pisces aí completa esta idéia, por trazer os peixes em direções opostas, mas formando um conjunto, uma complementaride). Dr. Jeckil & Mr. Hard. Por aí vai.
Estou escrevendo um poeminha com esta pegada do duplo interno.