Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
5/02/2013
Mais do planetário de bolso
Marte
Toda vez que passo, uma mecha de cabelo de alguma mulher morta se gruda nas minhas costas. Ventosas: meu corpo cada vez mais anêmico, coberto de pelos vermelhos. Polvo bélico, cápsula de aço orgânico, tentáculos fisgando o seu pesadelo. Aranha vermelha em camisa preta, um leão agoniza no minizoo, lentamente feroz. O meu rastro é feito de partículas do meu corpo, mês desgasto e me renovo, sempre originário. Sou traiçoeiro como um monstro triste, uma flor cheia de dentes, escrevo como quem tatua gritos no papel. A cada vez que te assassino você se sente vítima de ódio, mas é a tristeza que me lança em agressões repentinas – deus me armou como quem monta uma armadilha.
Mercúrio
Só existo enquanto caricatura em teus olhos perspicazes, você inteiro em si mesmo. Existe um preconceito muito forte separando você de mim. Eu que entre a tristeza e a tristeza não encontro um caminho natural. Vou deixando heráldicas como rastro, vestígio e sinal de que nunca estive ali: mão de ferro empunhando um dragão (de pano). É o destino dos pequenos, ser uma lágrima a mais na face definida dos imensos, o seu riso invulnerável, um desperdício do tempo. Você íntegro, claro como um rosto nu, que nem mesmo precisa de máscara porque não há istmos abertos pelas unhas afiadas da vida entre seu juízo e o que vai entre seu juízo e o juízo final. Você, o monólito com uma sombra de falsidade: euzinho aqui, caricatura do humano. Seria você o caricaturista? Só o incriado não é caricatural, sou tua criatura, um animal de estimação, uma repugnância necessária antes de verniz do seu engodo, a falácia que convence sua verdade, a maldição exemplar que dá aos abençoados a certeza de que sua bênção não é uma desgraça camuflada? O que seria do mundo se todos fossem verdadeiros e solares como tu?
4/24/2013
olhos ardem, sal no rosto
máscara de areia
mínimos cristais
o céu espelha água
sem tempo de sorriso.
nuvens de pelica
luz implode, beleza dói,
água intensifica passagem
de corrente elétrica.
quantos torturados no ministério verde
persianas abertas, fechadas,
monumento feérico verdejando.
flores químicas
garagens por dentro,
sonho de pétalas transparentes
à paisana.
pálpebras de planetário
olho tem células de ver breu
dor desenha dentes raízes
de caule em lobo com rosto,
logo antes do desmaio.
pequenas pétalas no capim:
haste vermelha, fios brancos,
desvanecem ao toque do olhar.
capim adubado com sangue.
espasmo elétrico.
paisagem pura à beira do lago.
árvores simulam fuzilamentos,
sob luzes amarelas.
máscara de areia
mínimos cristais
o céu espelha água
sem tempo de sorriso.
nuvens de pelica
luz implode, beleza dói,
água intensifica passagem
de corrente elétrica.
quantos torturados no ministério verde
persianas abertas, fechadas,
monumento feérico verdejando.
flores químicas
garagens por dentro,
sonho de pétalas transparentes
à paisana.
pálpebras de planetário
olho tem células de ver breu
dor desenha dentes raízes
de caule em lobo com rosto,
logo antes do desmaio.
pequenas pétalas no capim:
haste vermelha, fios brancos,
desvanecem ao toque do olhar.
capim adubado com sangue.
espasmo elétrico.
paisagem pura à beira do lago.
árvores simulam fuzilamentos,
sob luzes amarelas.
4/15/2013
Criei meus filhos na terra
Delineada com minhas unhas curtas.
Juntei água morna, sol, bacias e pás.
Enquanto eles brincavam,
Esculpi seus corpos com minhas verdades
Temporárias.
Hoje, ao vê-los assim, meio tortos,
Mes œuvres d'art
abstrait,
Liberto-me do território,
Do museu.
Dou-lhes cinzéis e martelo
E espero netos,
Ensolarada.
4/10/2013
Da série planetário de bolso
Terra
Quanto mais cavo, mais pesada é a terra e mais próxima da leveza etérea. Quanto mais fundo é o túmulo, mais leve é o fantasma. As palavras nascem asas do lodo. Quem sonha com uma saída, sente os pés enraizados e é mais fácil romper os ossos que tocar as utopias que trago em meu ventre denso, obscuro, incandescente. Sou a morada mortal de poetas ainda mais mortais do que eu. Desistam, não há ouvidos para o seu lamento. E se ouvidos houvessem, inexistiria interesse. Lancem suas mensagens ao mar, mas o mar é duro e transparente como uma pedra. Desprezem a lama que lhes deu vida, como coisa viscosa que envolve suas palavras em podridão. Não existe aparelho perceptivo para a podridão que emana de seus corpos, sua solidão é sem remédio.
Vênus
A luz filtrada pelas nuvens é ainda mais avessa aos olhos – a criança grita como se a certidão de nascimento estivesse em jogo e as nuvens fossem a porra de seu pai – édipo destronado, estrela da manhã, diamante de esperma adornando a lua – o segredo da espuma – o mar verde cor de detergente, teu solo pegajoso onde se mergulha ao dissolver-se – crianças brincam na lava, bolhas de sabão, porra e limpol, no que seria apenas o choque natural entre sal e água – em torno do sol, o mar da história é felicidade de espuma onde a lenda germina e se cria um vazio de lodo – sangue coagulado – o coração vivo vaga pelo céu vazio – escroques estupram Mnemosine – Mnemosine é uma cachorra, uma puta que proclama lições de moral em frente ao éter.
Quanto mais cavo, mais pesada é a terra e mais próxima da leveza etérea. Quanto mais fundo é o túmulo, mais leve é o fantasma. As palavras nascem asas do lodo. Quem sonha com uma saída, sente os pés enraizados e é mais fácil romper os ossos que tocar as utopias que trago em meu ventre denso, obscuro, incandescente. Sou a morada mortal de poetas ainda mais mortais do que eu. Desistam, não há ouvidos para o seu lamento. E se ouvidos houvessem, inexistiria interesse. Lancem suas mensagens ao mar, mas o mar é duro e transparente como uma pedra. Desprezem a lama que lhes deu vida, como coisa viscosa que envolve suas palavras em podridão. Não existe aparelho perceptivo para a podridão que emana de seus corpos, sua solidão é sem remédio.
Vênus
A luz filtrada pelas nuvens é ainda mais avessa aos olhos – a criança grita como se a certidão de nascimento estivesse em jogo e as nuvens fossem a porra de seu pai – édipo destronado, estrela da manhã, diamante de esperma adornando a lua – o segredo da espuma – o mar verde cor de detergente, teu solo pegajoso onde se mergulha ao dissolver-se – crianças brincam na lava, bolhas de sabão, porra e limpol, no que seria apenas o choque natural entre sal e água – em torno do sol, o mar da história é felicidade de espuma onde a lenda germina e se cria um vazio de lodo – sangue coagulado – o coração vivo vaga pelo céu vazio – escroques estupram Mnemosine – Mnemosine é uma cachorra, uma puta que proclama lições de moral em frente ao éter.
4/01/2013
Da série Planetário de bolso 1
Saturno
Leveza mais pesada que todos os outros pesos somados, água viscosa escura e quente, de um quente frio gelando a alma, assim como a verdade migra de boca em boca até ficar irreconhecível esse é o movimento do velho sábio ao descobrir que não devia ter começado, mas agora não há volta e prossegue, lendo um livro atrás do outro, como se uma nova doença fosse necessária para curar a velha doença e assim por diante, irmão siamês da Terra conectado à sua dor por laços invisíveis como arames farpados mentais, não o filho pródigo e sim o irmão invejoso do filho pródigo, o que sempre ficou, o que nunca partiu e que apenas tarde demais entende que deveria ter partido para poder retornar, há uma lágrima repartida no horizonte de onde brota toda a beleza da singularidade, um desperdício de beleza vagando no espaço, este planeta é todo verde por dentro.
Urano
Quase parado, cúpula de gelo cobrindo o oceano. Tudo o que, suspeita-se, pende invisível no segredo noturno. A violência da vida nasce com marteladas que produzem sangue no que antes parecia um cristal impoluto. Labor de dentes mastigando o próprio ventre por dentro, matéria densa parteira de palavras antes de emergirem num sopro, ventania brotando do choque do vidro mais denso contra o sonho de estar vivo. Uma presença incerta, algo como um calafrio, uma visita inesperada. Olho pro teto: um pequeno cubo luminoso, semelhante a uma cigarreira com figuras humanas de perfil: azul claro em meio à escuridão. Digo: “não tenho medo e nem odeio”. Do cubo começam a cair pequenos losangos coloridos. Quantas cores: azul, verde, vermelho, amarelo: cada losango se abre e dele saem novos e menores losangos de cores diferentes: lilás, cinza, laranja, branco. É tudo tão lento: os losangos parecem se mover como se fossem animais marinhos, polvos abrindo seus tentáculos e procriando vidas de seda. Antes de os losangos desaparecerem ao tocar meu rosto, novos e novos se abrem, sempre menores – e cada vez mais coloridos. Uma sensação de tranqüilidade: ou a presença se foi ou ela se dissolveu em meu rosto, que brilha suavemente na escuridão enquanto desapareço.
Leveza mais pesada que todos os outros pesos somados, água viscosa escura e quente, de um quente frio gelando a alma, assim como a verdade migra de boca em boca até ficar irreconhecível esse é o movimento do velho sábio ao descobrir que não devia ter começado, mas agora não há volta e prossegue, lendo um livro atrás do outro, como se uma nova doença fosse necessária para curar a velha doença e assim por diante, irmão siamês da Terra conectado à sua dor por laços invisíveis como arames farpados mentais, não o filho pródigo e sim o irmão invejoso do filho pródigo, o que sempre ficou, o que nunca partiu e que apenas tarde demais entende que deveria ter partido para poder retornar, há uma lágrima repartida no horizonte de onde brota toda a beleza da singularidade, um desperdício de beleza vagando no espaço, este planeta é todo verde por dentro.
Urano
Quase parado, cúpula de gelo cobrindo o oceano. Tudo o que, suspeita-se, pende invisível no segredo noturno. A violência da vida nasce com marteladas que produzem sangue no que antes parecia um cristal impoluto. Labor de dentes mastigando o próprio ventre por dentro, matéria densa parteira de palavras antes de emergirem num sopro, ventania brotando do choque do vidro mais denso contra o sonho de estar vivo. Uma presença incerta, algo como um calafrio, uma visita inesperada. Olho pro teto: um pequeno cubo luminoso, semelhante a uma cigarreira com figuras humanas de perfil: azul claro em meio à escuridão. Digo: “não tenho medo e nem odeio”. Do cubo começam a cair pequenos losangos coloridos. Quantas cores: azul, verde, vermelho, amarelo: cada losango se abre e dele saem novos e menores losangos de cores diferentes: lilás, cinza, laranja, branco. É tudo tão lento: os losangos parecem se mover como se fossem animais marinhos, polvos abrindo seus tentáculos e procriando vidas de seda. Antes de os losangos desaparecerem ao tocar meu rosto, novos e novos se abrem, sempre menores – e cada vez mais coloridos. Uma sensação de tranqüilidade: ou a presença se foi ou ela se dissolveu em meu rosto, que brilha suavemente na escuridão enquanto desapareço.
3/22/2013
O estado natural da luz de Brasília é estourado. A banalidade é nosso incêndio cotidiano, tudo tende à pedra, inclusive as raízes do fícus que rompem o asfalto. Vozes sob o silêncio deixam claro que conhecem seu passado que retorna como estigma, cicatriz brilhante por dentro do seu coração, que deveria ser invisível. Assassinos de aluguel sabem o seu nome e dizem em alto e bom som toda vez que te vêem no comércio local. Se estão mal humoradas, e sempre estão, as crianças sussurram seu nome quando você passa – é você mesmo, o abandonado. Não existe abrigo, a porta está sempre aberta porque sempre alguém está partindo. E você também, só que se partindo por dentro. A luz arde como estilhaços de vidro rompendo suas veias. O sol está coberto por uma lente, você queima como papel, a vida é apenas normal.
3/13/2013
Aperto de mãos, pra você é tão natural. Fio elétrico escondido na carne e não precisamos mais do que alguns meses. Como eu devo agir depois de nos despedirmos? Dois passos para trás e depois me viro? Um passo é suficiente? Ou já posso me virar imediatamente? Para a direita ou para a esquerda? Como deve ser meu olhar e a intensidade do sorriso? E depois por quanto tempo é adequado eu preservar a sua imagem na minha mente? Devo fazer perguntas e responder por você, como se você fosse minha marionete? Ou devo limpar a mente e apagar a informação, começando do zero? Mas, então, como eu te reconheceria?
3/01/2013
Só conheço pessoas que se liquefazem, estão se arrastando em seus rastros oleosos de lesma, digerindo-se, descendo pelo ralo da história. Vão se consumindo e o tempo é um criador de distorções, em nossas mentes retorcidas e corações que apodrecem. Seu tempo passou e elas caíram de maduras. E quem começou a linhagem de raiva e frustração? Que aprendizado a vida trouxe? O que é a voz da sabedoria? Nada, a não ser a mesma dor que atrai mais dor semelhante para o núcleo do mundo. O cansaço fermenta na terra quente, e ela tem fome de sofrimento. O destino é um ímã curioso, os corpos se dissolvendo em lodo e cobrindo-se com palha de metal moída pelo deus invisível – gosmentos porcos espinhos, signos da história. E todos dizem se ao menos eu tivesse uma palavra amiga. Mas ninguém pronuncia uma palavra amiga. E todos pensam se alguém me salvasse. Mas não há salvação quando todos se afogam, e o que é a vida se não esse caldo intragável de restos de corpos em decomposição em que as gerações se afogam. E todos dizem se eu te der minha mão serei apenas um peso a mais te puxando pro fundo, pro ventre da derrota.
Uma bala interromperia o processo? Você tem meu número. Me telefone antes de apertar o gatilho.
Uma bala interromperia o processo? Você tem meu número. Me telefone antes de apertar o gatilho.
2/19/2013
Mar, cor de
Cobre
Espuma da loucura
Cura-me
Da praia, fogueiras
Ao luau à beira
Da vida,
Os olhos
Estranhos dos animais
Que habitam
Teu ventre, dentes
Ondas mastigam
A sanidade dos turistas
(Iluminam, de dentro
Pra fora)
Os restos
De sentimentos mortos
Ao mar noturno comendo
Castelos de areia
Onde sonhamos
Estarmos despertos.
Em torno
Anjos voam
Como insetos.
Memória do mar
No primeiro desdobrar-se
Do coração
Na primeira lágrima
Desperdiçada.
Cobre
Espuma da loucura
Cura-me
Da praia, fogueiras
Ao luau à beira
Da vida,
Os olhos
Estranhos dos animais
Que habitam
Teu ventre, dentes
Ondas mastigam
A sanidade dos turistas
(Iluminam, de dentro
Pra fora)
Os restos
De sentimentos mortos
Ao mar noturno comendo
Castelos de areia
Onde sonhamos
Estarmos despertos.
Em torno
Anjos voam
Como insetos.
Memória do mar
No primeiro desdobrar-se
Do coração
Na primeira lágrima
Desperdiçada.
2/11/2013
Artesanato morto-vivo
1.
Estou sentindo novamente.
O chão do apartamento é de areia e está todo marcado por pegadas de estranhos.
Me deito e flutuamos no vazio, numa cama barco esquife trancada por fora.
O universo é uma pétala transparente, ilimitada cápsula.
2
O pensador embalsama a jovem mulher e guarda a múmia num caixote, depois coloca o caixote num barco-esquife e solta o barco num rio qualquer. E é isso que se chama de artesanato zumbi – conceito essencial para a correta compreensão da história das idéias.
3.
Sempre que imaginamos, contra a intuição, estarmos num planeta em movimento é como se girássemos lateralmente. Nunca pensamos que estamos num movimento de roda gigante, subindo e caindo. Evitamos a respiração suspensa no ponto mais baixo da queda – e seria pior uma queda livre? Ou o pior é saber que a queda é apenas o recomeço e lá em cima teremos novamente que olhar para baixo e puxar o ar com força – antes de cair outra e outra vez?
Estou sentindo novamente.
O chão do apartamento é de areia e está todo marcado por pegadas de estranhos.
Me deito e flutuamos no vazio, numa cama barco esquife trancada por fora.
O universo é uma pétala transparente, ilimitada cápsula.
2
O pensador embalsama a jovem mulher e guarda a múmia num caixote, depois coloca o caixote num barco-esquife e solta o barco num rio qualquer. E é isso que se chama de artesanato zumbi – conceito essencial para a correta compreensão da história das idéias.
3.
Sempre que imaginamos, contra a intuição, estarmos num planeta em movimento é como se girássemos lateralmente. Nunca pensamos que estamos num movimento de roda gigante, subindo e caindo. Evitamos a respiração suspensa no ponto mais baixo da queda – e seria pior uma queda livre? Ou o pior é saber que a queda é apenas o recomeço e lá em cima teremos novamente que olhar para baixo e puxar o ar com força – antes de cair outra e outra vez?
1/24/2013
Elegia ao meu amigo cineasta
Deixo que a sanfona fumegante sopre as palavras desta elegia. É pra meu amigo cineasta, cujo coração é uma aranha vermelha. Neste mundo em que tudo é câmera, ele enquadra a cena com as mãos vazias e assim é o diretor e único espectador do seu filme. Os personagens carecem de corpo, já que ali a onde a palavra cria teias o corpo secreta espírito, a solidariedade é uma pantera morta. Ouro, prata, lápis-lazúli, cristal, coral, ágata e madrepérola: nem que de todas as galáxias fossem colhidos tais tesouros, tudo é sem motivo. Meu amigo, tu é chato pra caralho
eu também sou chato, a gente poderia ter organizado uma conspiração dos chatos pra provar pras pessoas que ninguém é tão legal quanto pensa. Mas, pelo menos produzimos de seis a sete filmes em coisa de quinze minutos,
naquele aquário, como era irreal a luz vermelha sobre a aranha vermelha na camisa preta, psicose de bolso trazida pelo correio, desenhos projetados pela mente e só quem está dentro da sua cabeça pra saber o que você viu, ou seja, todo mundo e como as risadas explodiam como bolhas contra o palco e como os sete selos do apocalipse podiam ser ali improvisados, como o filme visto pelas crianças de Fátima, virgem Maria em 3D jogando dados apocalípticos com o acaso: a cidade antiga babando vermelho na madrugada; alguém na varanda comendo churrasquinho e fazendo comentários críticos sobre os transeuntes; virtudes abstratas e personificadas em versos antigos caindo pouco a pouco contra o céu vermelho da madrugada; um serpentário na garganta; pássaros estranhos e sem nome impedindo a passagem pela ponte; devaneio e batata chips no hotel; cadáveres de poetas simbolistas espalhados pelas jaulas de animais colecionados para deleite das crianças; e como as coisas ficam leves quando o cenário é desmontado e esse sensação de maldição evaporada, envolvente, sinuosa, brindando os breves contatos de nossa alegria.
No dia seguinte o filme seria outro, caminhando sob a chuva como uma sensação de cobre por dentro, sangue espesso como luz de igreja gótica, as escadarias em hélice e um sonho de vertigem – mas aí não havia mais o meu amigo cineasta, que sumiu para sempre, na mais santa incoerência. Assim seja.
eu também sou chato, a gente poderia ter organizado uma conspiração dos chatos pra provar pras pessoas que ninguém é tão legal quanto pensa. Mas, pelo menos produzimos de seis a sete filmes em coisa de quinze minutos,
naquele aquário, como era irreal a luz vermelha sobre a aranha vermelha na camisa preta, psicose de bolso trazida pelo correio, desenhos projetados pela mente e só quem está dentro da sua cabeça pra saber o que você viu, ou seja, todo mundo e como as risadas explodiam como bolhas contra o palco e como os sete selos do apocalipse podiam ser ali improvisados, como o filme visto pelas crianças de Fátima, virgem Maria em 3D jogando dados apocalípticos com o acaso: a cidade antiga babando vermelho na madrugada; alguém na varanda comendo churrasquinho e fazendo comentários críticos sobre os transeuntes; virtudes abstratas e personificadas em versos antigos caindo pouco a pouco contra o céu vermelho da madrugada; um serpentário na garganta; pássaros estranhos e sem nome impedindo a passagem pela ponte; devaneio e batata chips no hotel; cadáveres de poetas simbolistas espalhados pelas jaulas de animais colecionados para deleite das crianças; e como as coisas ficam leves quando o cenário é desmontado e esse sensação de maldição evaporada, envolvente, sinuosa, brindando os breves contatos de nossa alegria.
No dia seguinte o filme seria outro, caminhando sob a chuva como uma sensação de cobre por dentro, sangue espesso como luz de igreja gótica, as escadarias em hélice e um sonho de vertigem – mas aí não havia mais o meu amigo cineasta, que sumiu para sempre, na mais santa incoerência. Assim seja.
1/19/2013
Monástica
É na madrugada que o som se torna insuportável
E essa gota amarga na língua faz o estômago ranger.
Portas e mais portas sem tranca
São abertas com mão de ferro:
É o retorno do oráculo
Chafurdando o futuro nas margens
Do passado.
Ao lado, ele dorme como uma serra elétrica.
Lá fora, os pássaros falam a língua dos dias.
Meu rosto, papel de arroz,
Finge um origami plácido e esconde
Orientalmente
Esses olhos lúcidos e o escárnio que escorre
Dos cantos
Da boca.
1/15/2013
Soneto dos meus sonhos
Vejo a mim mesmo como uma ilusão refratada de mãos que se fecham contra o peito
Protegendo-se num silêncio e apto a enxergar a luz muito forte do sol como se fosse outro nosso planeta.
Vejo minha irmã mais velha como alguém que decidiu obsessivamente proteger a todos, o que é impossível dada a quantidade das feridas que tendem ao infinito – o universo é uma ferida em expansão.
Vejo meu irmão mais velho como o Sacrificado, a carta que foi lançada cedo demais contra o vento e o mero abismo irrisório da vida, aquele que teve que abrir caminho no labirinto obscuro e percebeu cedo demais que a pretensa ordem das galáxias é um triste concerto de palavras.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
Vejo uma criança enviada ao seminário para estudar com os padres a sua podre sabedoria e tendo que encarar a inexplicável rejeição, vejo essa criança envelhecendo oscilando entre a pretensa santidade e a completa frustração, sob uma luz desconhecida.
Vejo uma criança que vê sua mãe morrer afogada ou que precisa disso para aplacar as vozes que gritam coisas contra ela, contra sua fragilidade, contra a derrota predestinada dos astros negativos que cumprem um papel absurdo na ordem cósmica.
Assim vejo meus pais, mas apenas hoje, em que penso sobre sua absurda fragilidade.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
Meu irmão mais novo surgiu, para mim, como uma estrela inesperada e sonha com cataventos à beira do tempo.
Mas não se iludam, ele aprende a controlar sua fragilidade
E dará as respostas na hora certa, no momento preciso, contra a arrogância dos homens que fazem a história como quem tece um pesadelo.
Minha irmã mais nova surge como uma perplexidade que observa perplexamente a vida, um espelho cheio de sentimentos e melancolia.
E em seus olhos todas essas vidas se desencontram, ou sou eu que vejo tudo isso, todos nós na tristeza de seus olhos, desde o dia em que ensinei, com uma lanterna, que o milagre das estrelas é a distância.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
Protegendo-se num silêncio e apto a enxergar a luz muito forte do sol como se fosse outro nosso planeta.
Vejo minha irmã mais velha como alguém que decidiu obsessivamente proteger a todos, o que é impossível dada a quantidade das feridas que tendem ao infinito – o universo é uma ferida em expansão.
Vejo meu irmão mais velho como o Sacrificado, a carta que foi lançada cedo demais contra o vento e o mero abismo irrisório da vida, aquele que teve que abrir caminho no labirinto obscuro e percebeu cedo demais que a pretensa ordem das galáxias é um triste concerto de palavras.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
Vejo uma criança enviada ao seminário para estudar com os padres a sua podre sabedoria e tendo que encarar a inexplicável rejeição, vejo essa criança envelhecendo oscilando entre a pretensa santidade e a completa frustração, sob uma luz desconhecida.
Vejo uma criança que vê sua mãe morrer afogada ou que precisa disso para aplacar as vozes que gritam coisas contra ela, contra sua fragilidade, contra a derrota predestinada dos astros negativos que cumprem um papel absurdo na ordem cósmica.
Assim vejo meus pais, mas apenas hoje, em que penso sobre sua absurda fragilidade.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
Meu irmão mais novo surgiu, para mim, como uma estrela inesperada e sonha com cataventos à beira do tempo.
Mas não se iludam, ele aprende a controlar sua fragilidade
E dará as respostas na hora certa, no momento preciso, contra a arrogância dos homens que fazem a história como quem tece um pesadelo.
Minha irmã mais nova surge como uma perplexidade que observa perplexamente a vida, um espelho cheio de sentimentos e melancolia.
E em seus olhos todas essas vidas se desencontram, ou sou eu que vejo tudo isso, todos nós na tristeza de seus olhos, desde o dia em que ensinei, com uma lanterna, que o milagre das estrelas é a distância.
Vejo tudo isso e entendo os homens antigos que sonhavam com o perdão absoluto.
1/04/2013
Clio
E lá vem Clio, toda chapada dobrando a esquina. Cabelos esvoaçantes de medusa, vem tocando a trombeta, que som insuportável crianças não adianta tapar o ouvido. E vem Clio, vestida de branco, ela é o velho do saco, saco de lixo de lona preta, vai raptando crianças e fabricando espuma em seu esconderijo, espuma gosmenta e vermelha, a baba venenosa do tempo, que Clio toma e fica chapada, que bad trip crianças, o velho do saco está convencido de que somos meros obstáculos.
12/22/2012
História, aborteira de utopias
A luz do dia filtrada por uma fria substância lunar, fina película cobrindo os olhos.
Alguém deitado em campo aberto pede ajuda apenas pra dizer qualquer coisa
porque esta é apenas a figura irreal do pânico: uma mulher deitada em campo aberto com despojos lunares
não faz o menor sentido, como pensar que astros sombrios projetam forças estranhas que formam um véu sobre a sua beleza e que por isso você é irremediavelmente triste.
Brasília, cidade grave, dos tons graves em punk-barroco aqui não há como ser lúcido sem a sensação constante de náusea, você não faz sentido, é uma coisa estranha nessa paisagem de funcionários públicos, pedra melancólica que parece constantemente cair, vinda de um lugar muito distante.
Nesta noite sonhei com uma alegria vislumbrada em plena sombra.
Alguém deitado em campo aberto pede ajuda apenas pra dizer qualquer coisa
porque esta é apenas a figura irreal do pânico: uma mulher deitada em campo aberto com despojos lunares
não faz o menor sentido, como pensar que astros sombrios projetam forças estranhas que formam um véu sobre a sua beleza e que por isso você é irremediavelmente triste.
Brasília, cidade grave, dos tons graves em punk-barroco aqui não há como ser lúcido sem a sensação constante de náusea, você não faz sentido, é uma coisa estranha nessa paisagem de funcionários públicos, pedra melancólica que parece constantemente cair, vinda de um lugar muito distante.
Nesta noite sonhei com uma alegria vislumbrada em plena sombra.
12/14/2012
Pietá
Desata em tangos, menino
Solta os cabelos e vem
Fluido
Sacudir as árvores brancas
Cantar os males aos berros
Cortar os dedos do homem
Jogar a bandeira fora
Vibrar
Tira a camisa e vem
Aflito
Seus olhos vidrados
Vertentes
Tangenciam os ventos
E sulcos
Da paisagem
Lunar
Lunar
Somos suas
Todas
Todas as mães e irmãs
Suas
Cantamos seu desalinho
Fazemos sua cama
Seu leito
Para que venha, enfim,
Descansar.
12/05/2012
A última semana da minha vida
Minha força é a fraqueza
Arranco fibra a fibra os meus músculos
Até que só restem
Dois olhos opacos como cal
Dois ouvidos que captam as vibrações do calendário
E uma boca tão derrotada que dele só brotam
Os sons imateriais da mente.
Meus inimigos são anjos
E não sabem.
* * *
Tempo é gestos que abrem precipícios
Você vira o volante à direita pensando no cd que vai gravar
O celular toca na hora em que o médico ia receitar o anticoagulante
Ela desceu mais rápido do que normalmente, eu a encontro no meio do caminho quando o normal seria eu ter passado por ali só
Amanhã pode ser que eu coincida – se houver amanhã
* * *
Com os dois olhos que brotam gotas de pus na extremidade de dois canudos cheios de cerda e lodo, o molusco tateia a realidade externa ao seu exoesqueleto, sua carne frouxa não seria páreo para a força bruta dos peixes e suas bocas de centenas de dentes e por isso ele se esconde por trás de algo que simula a impassibilidade mineral – ele tateia, gira os olhos pelo ambiente, antes de sair de dentro de sua caverna óssea para a caçada. Pois é, o nosso torpe amigo também é predador.
Há predadores em toda parte, inclusive por dentro de sua carne viscosa, nojenta de engolir como um chiclete. Se não foi hoje, vai ser amanhã.
Oceano é destino bruto e sem lei.
Arranco fibra a fibra os meus músculos
Até que só restem
Dois olhos opacos como cal
Dois ouvidos que captam as vibrações do calendário
E uma boca tão derrotada que dele só brotam
Os sons imateriais da mente.
Meus inimigos são anjos
E não sabem.
* * *
Tempo é gestos que abrem precipícios
Você vira o volante à direita pensando no cd que vai gravar
O celular toca na hora em que o médico ia receitar o anticoagulante
Ela desceu mais rápido do que normalmente, eu a encontro no meio do caminho quando o normal seria eu ter passado por ali só
Amanhã pode ser que eu coincida – se houver amanhã
* * *
Com os dois olhos que brotam gotas de pus na extremidade de dois canudos cheios de cerda e lodo, o molusco tateia a realidade externa ao seu exoesqueleto, sua carne frouxa não seria páreo para a força bruta dos peixes e suas bocas de centenas de dentes e por isso ele se esconde por trás de algo que simula a impassibilidade mineral – ele tateia, gira os olhos pelo ambiente, antes de sair de dentro de sua caverna óssea para a caçada. Pois é, o nosso torpe amigo também é predador.
Há predadores em toda parte, inclusive por dentro de sua carne viscosa, nojenta de engolir como um chiclete. Se não foi hoje, vai ser amanhã.
Oceano é destino bruto e sem lei.
11/28/2012
Você pode dizer que escolheu a solidão. Mas e as pessoas translúcidas neste fim de tarde, e a certeza noturna de que o mundo flutua sobre um oceano sustentado pelos seres mais inverossímeis, e os fantasmas que andam armados pelas escolas, e as crianças lendo Mein Kampf nos bueiros, e o amor que se esfacela em ritmos desencontrados. E quando você se senta, olhando para a parede, e o quarto todo é uma inteira pétala incendiada – e só assim, nessa cápsula de silêncio, existe uma vaga promessa de sentido.
11/14/2012
OS CARALHOS DE SHARON OLDS
OS CARALHOS DE SHARON OLDS
os caralhos de Sharon Olds
são iguais
aos caralhos de Ginsberg?
estes que fedem e morrem
a tempo, em New York, Kansas
que são chupados
e esquecidos
em quartos podres
de motéis baratos
estes feridos
pela passagem
das águas
que se sabem
a cetins escarlates
cobertos de algodão branco
estes homens nus
que respiram
como peixes em vidro
sufocados pelos céus
marchetados de fumaça negra
que aqui, não se são
se sabem pau, cacete
um membro-falácia
uma glória esquecida
para quem foi mulher
filha, mãe
loba mal-fodida
que em ti,
sobram caralhos na boca
falantes, molhantes
mas que agora,
pendem das mãos
escritos, descritos
soçobrando
em Kansas, Nova York
no vácuo,
em quartos rançosos
em lençóis negros
de sangue e sêmen
no vazio,
no nada, como uma guelra.
(Anderson Dantas, Ilha de SC, 14/11/2012)
11/13/2012
Os sete matizes da suspeita
A mão cheia de anéis tira a máscara com rosto de mulher – outra máscara com rosto de criança – outra máscara com rosto de bandido – outra máscara com rosto de louco – outra máscara com rosto de lobisomem,
animal, pura voz
de dor.
Mão sem veias, com fios elétricos desencapados ao redor dos ossos. Sete anéis em cinco dedos, por trás de tudo isso um matiz de rosa impossível, cor de rosa contraindo-se como sangue sugado por buraco-negro de sete estrelas conjugadas: a cidade é pintada com as cores delirantes do general lírico.
Seu nome consta nas listas de torturadores.
animal, pura voz
de dor.
Mão sem veias, com fios elétricos desencapados ao redor dos ossos. Sete anéis em cinco dedos, por trás de tudo isso um matiz de rosa impossível, cor de rosa contraindo-se como sangue sugado por buraco-negro de sete estrelas conjugadas: a cidade é pintada com as cores delirantes do general lírico.
Seu nome consta nas listas de torturadores.
11/05/2012
Jogo do Um Acerto
"Para que eu, um prisioneiro em Uqbar no longínquo século do Levante da Codorniz, pudesse chegar até você, por quantas bocas, ouvidos e línguas este lamento não passou, mudando completamente suas palavras e sentido? Você acredita mesmo que algo sobrou do que acabo de escrever na parede desta cela com meu próprio sangue, e está sendo lido por seus olhos nessa tela de computador?"
10/26/2012
Minha conversa com Fante
Neste ano desci duas vezes ao inferno. Descer talvez não seja a melhor palavra, porque o inferno não está abaixo da superfície, no porão do mundo, o inferno é apenas um certo ritmo da vida, uma desorientação fundamental que procuramos esconder sob o véu da realidade. Deixar o inferno subir até você tem um teor libertário, você não é uma presa fácil da realidade e seus artifícios. Por outro lado, o inferno é irrespirável: pensei numa imagem assim, uma sede de quem comeu girassol em pó e pra quem a água se tornou tão imaterial quanto o ar. Quem conhece o inferno precisa de três coisas (todos precisam, mas quem conhece o inferno precisa com mais intensidade): amor, amizade e arte. E aí entram os shows da Banda RioClaro neste ano. Um, em especial, num domingo seguinte ao dia em que eu pensei que queria dormir por uns 10 meses. Estar acordado pra certos encontros da vida é um primeiro passo: o encontro entre uma certa tonalidade do céu de vermelho a azul contra o lago quase dourado e a música que anima duas meninas, duas pequenas dançarinas sobre a grama intensamente verde. Depois de estar acordado, despertar. Iluminar-se. Respirar. Enfim, por isso resolvi escrever, como agradecimento, essa conversa imaginária com John Fante, seguindo uma dica do Ray (um puro devaneio, sem pretensão, não finjo dar conta de um nome consagrado, um livro que esmaga aqueles que tentam copiar o seu estilo, enquanto escrevo isso em meu computador empoeirado).
Eu: Tenho alguns textos, umas coisas meio parecidas com livros, vou soltando meio aleatoriamente porque não tenho essa convicção que vejo em você sobre duas coisas: o meu talento literário e o sentido de ser alguma coisa na vida como um escritor. A minha dúvida é: existe algum lugar adequado para os livros?
Fante: O deserto.
Eu: As cascas de laranja jogadas no chão, as velhas solitárias, os casais brigando, as crianças que nascem a contragosto, os taxistas; isso tudo não é estética, certo?
Fante: São sinais, indícios de alguma coisa parecida com salvação.
Eu: As coisas estão cheias de anjos, ouvi dizer.
Fante: Eu preferia bons charutos, uma noite com aquela mulher de pele cor de raposa, eu preferia ser o autor.
Eu: Isso você conseguiu, ser autor. Tem até seus porta-vozes oficiais e imitadores.
Fante: É uma ironia da história.
Eu: Uma mentira, e não um desejo. O sujeito começa a se levar a sério.
Fante: Do mesmo jeito, o dinheiro é bom porque liberta, mas dinheiro deve ser amado apenas platonicamente.
Eu: Também li isso em algum lugar. Também ando em torno dessa questão do amor, do amor que só faz sentido pra quem é solitário, os momentos de brilho intenso, sempre passageiros, uma recordação depois da outra, até um ponto em que tudo mal se inicia e já é despedida. A memória cansa mais do que a esperança.
Fante: De vez em quando, interrompo as divagações inventando uma perspectiva diferente, por exemplo: um rato observando um escritor debruçado sobre a poeira, sonhando com sua maravilhosa namorada mexicana. Isso dá mais densidade pra realidade, mas também indica que o tempo não é só esse em que estamos presos, esse apocalipse sem fim.
Eu: Aquela princesa que não vai se importar com o fato de você não ser um vencedor, aquela que foi menosprezada como nós. Palmeira, palmeira, palmeira, palmeira. Dois dias seguidos?
Fante: Acreditar em palavras é a pior forma de loucura.
Eu: Alberto Caeiro, Zaratustra (que é melhor do que Jesus), Bandini, muitos dos melhores sujeitos dos últimos tempos são fictícios.
Fante: A realidade asfixia. Mas a ficção não é mentira, não é o oposto do real porque é desejo.
Eu: Nesse sentido é que eu queria entender de anjo. Um anjo me trazendo uma boa garrafa de vinho. Pra te dizer a verdade, não me interesso pela literatura. Acho isso meio bobagem. Não quero um livro que não seja um bilhete premiado pra reinventar o desejo por uma boa namorada e um bom vinho.
Fante: Devaneios. Deus devia ter lido Nietzsche antes de criar o mundo.
Eu: Quando o Bandini diz que poderia ser qualquer coisa, um milionário, um jogador de beisebol, um escritor, eu, diferente de muita gente, acho que é a sério. Ele poderia ser qualquer coisa mesmo, e por extensão, você. Mas você não é Bandini, do mesmo jeito que ele não é o jogador de beisebol. Ele e você e eu somos o que poderia ser qualquer coisa dessas, pessoas comuns. Essa é toda diferença, que acho que alguns confundem quando pensam que fazendo de conta que são Bandini (por exemplo, reclamando da falta de grana) vão virar John Fante. Eles se esquecem, acho, que tudo é possível, incluindo Zaratustra e Caeiro, por conta desse poder ser mesmo, são prisioneiros do ser. Uma coisa é um cara que aspira a ser milionário, outra é o que é milionário, que se confunde com esse papel, a mesma merda rola com o sujeito que se convence que é escritor.
Fante: Eles não reconheceriam um gigante nem que um moinho de vento estivesse indo pra cima deles com tudo.
Eu: Falando em Dom Quixote, a falta de grana transforma o dinheiro numa coisa metafísica?
Fante: É estranho você dizer isso, parece papo acadêmico, porque é uma metafísica que dói no estômago.
Eu: É como se escrever fosse uma coisa suja, uma dedicação a uma atividade até ofensiva, como, por exemplo, procurar beleza e encantamento numa cidade por mais sórdida que ela seja, e você precisasse de um álibi razoável do tipo: escrevo, mas com uma finalidade, ganhar dinheiro.
Fante: Pode ser, mas a falta de grana é real, no meu caso. A vida é a continuação da literatura por outros meios.
Eu: É que a poesia separada do resto é uma coisa sórdida.
Fante: Que resto?
Eu: A vida.
Fante: Por isso eu odeio cadernos culturais.
Eu: Você imaginava que ia ser usado como pretexto pra um tipo exibicionista de literatura confessional?
Fante: Seja como for, eu não tenho nada a ver com isso. Eu não disse que prefiro Zaratustra a Jesus ensangüentado na cruz?
Eu: E a culpa que corre no seu sangue? Eu, por exemplo, depois de um ano de merda, estou começando uma nova história, um novo amor. Às vezes me flagro pensando que essa história toda vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. Mas não sei se faço isso só pra não perder o orgulho quando der merda, eu dizendo: pelo menos eu sabia que ia dar merda.
Fante: Você não viu pra quem eu dediquei meu livro? To falando de mim, não do Bandini. Tem gente que confunde experiência com experimentação. Experimentação é coisa de sociólogo, gente sem imaginação ou sentimento. Experiência é outra coisa. A vida pode dar um romance, mas a vida não é arrumadinha como um romance. Ou você vive o seu tempo, a sua condição e mergulha nisso, ou vai fazer outra coisa. Caso contrário, todos os roteiros estão traçados pelo conjunto de lixo que você leu e ouviu. Inclusive o meu livro pode virar lixo numa situação dessas.
Eu: Camisa pólo, sapatos brancos e óculos escuros, não é por aí? Nunca fui a Los Angeles e o que me impressiona é a variedade e o número de formas de destruição da cidade. Terremotos, maremotos, animais selvagens perdidos devido à expansão das avenidas, especulação imobiliária, um ar meio apocalíptico que torna a beleza mais urgente, a vida sempre está logo ali, a um passo, mas nunca é real porque sempre está à beira da morte.
Fante: Você não devia se gabar disso, você é de Brasília. Você deve entender alguma coisa de deserto. Poeira também não falta, cada palmo de terreno conquistado à moda turbulenta do velho oeste, tempestades de areia cobrindo a cidade inteira, o céu vermelho, azul de sanguessugas, branco, translúcido e você ali sozinho, debaixo dessa luz que nunca está parada, afundando nos monumentos paranóicos, você também ali sonhando com a sua princesa maia ou pelo menos acreditando que um dia vai encontrar a palavra certa, o percurso que vai fazer da poeira e do brilho uma coisa só, ao mesmo tempo bela e decadente. Que vai dar um pouco de alegria para os solitários e perdidos.
Eu: Tenho alguns textos, umas coisas meio parecidas com livros, vou soltando meio aleatoriamente porque não tenho essa convicção que vejo em você sobre duas coisas: o meu talento literário e o sentido de ser alguma coisa na vida como um escritor. A minha dúvida é: existe algum lugar adequado para os livros?
Fante: O deserto.
Eu: As cascas de laranja jogadas no chão, as velhas solitárias, os casais brigando, as crianças que nascem a contragosto, os taxistas; isso tudo não é estética, certo?
Fante: São sinais, indícios de alguma coisa parecida com salvação.
Eu: As coisas estão cheias de anjos, ouvi dizer.
Fante: Eu preferia bons charutos, uma noite com aquela mulher de pele cor de raposa, eu preferia ser o autor.
Eu: Isso você conseguiu, ser autor. Tem até seus porta-vozes oficiais e imitadores.
Fante: É uma ironia da história.
Eu: Uma mentira, e não um desejo. O sujeito começa a se levar a sério.
Fante: Do mesmo jeito, o dinheiro é bom porque liberta, mas dinheiro deve ser amado apenas platonicamente.
Eu: Também li isso em algum lugar. Também ando em torno dessa questão do amor, do amor que só faz sentido pra quem é solitário, os momentos de brilho intenso, sempre passageiros, uma recordação depois da outra, até um ponto em que tudo mal se inicia e já é despedida. A memória cansa mais do que a esperança.
Fante: De vez em quando, interrompo as divagações inventando uma perspectiva diferente, por exemplo: um rato observando um escritor debruçado sobre a poeira, sonhando com sua maravilhosa namorada mexicana. Isso dá mais densidade pra realidade, mas também indica que o tempo não é só esse em que estamos presos, esse apocalipse sem fim.
Eu: Aquela princesa que não vai se importar com o fato de você não ser um vencedor, aquela que foi menosprezada como nós. Palmeira, palmeira, palmeira, palmeira. Dois dias seguidos?
Fante: Acreditar em palavras é a pior forma de loucura.
Eu: Alberto Caeiro, Zaratustra (que é melhor do que Jesus), Bandini, muitos dos melhores sujeitos dos últimos tempos são fictícios.
Fante: A realidade asfixia. Mas a ficção não é mentira, não é o oposto do real porque é desejo.
Eu: Nesse sentido é que eu queria entender de anjo. Um anjo me trazendo uma boa garrafa de vinho. Pra te dizer a verdade, não me interesso pela literatura. Acho isso meio bobagem. Não quero um livro que não seja um bilhete premiado pra reinventar o desejo por uma boa namorada e um bom vinho.
Fante: Devaneios. Deus devia ter lido Nietzsche antes de criar o mundo.
Eu: Quando o Bandini diz que poderia ser qualquer coisa, um milionário, um jogador de beisebol, um escritor, eu, diferente de muita gente, acho que é a sério. Ele poderia ser qualquer coisa mesmo, e por extensão, você. Mas você não é Bandini, do mesmo jeito que ele não é o jogador de beisebol. Ele e você e eu somos o que poderia ser qualquer coisa dessas, pessoas comuns. Essa é toda diferença, que acho que alguns confundem quando pensam que fazendo de conta que são Bandini (por exemplo, reclamando da falta de grana) vão virar John Fante. Eles se esquecem, acho, que tudo é possível, incluindo Zaratustra e Caeiro, por conta desse poder ser mesmo, são prisioneiros do ser. Uma coisa é um cara que aspira a ser milionário, outra é o que é milionário, que se confunde com esse papel, a mesma merda rola com o sujeito que se convence que é escritor.
Fante: Eles não reconheceriam um gigante nem que um moinho de vento estivesse indo pra cima deles com tudo.
Eu: Falando em Dom Quixote, a falta de grana transforma o dinheiro numa coisa metafísica?
Fante: É estranho você dizer isso, parece papo acadêmico, porque é uma metafísica que dói no estômago.
Eu: É como se escrever fosse uma coisa suja, uma dedicação a uma atividade até ofensiva, como, por exemplo, procurar beleza e encantamento numa cidade por mais sórdida que ela seja, e você precisasse de um álibi razoável do tipo: escrevo, mas com uma finalidade, ganhar dinheiro.
Fante: Pode ser, mas a falta de grana é real, no meu caso. A vida é a continuação da literatura por outros meios.
Eu: É que a poesia separada do resto é uma coisa sórdida.
Fante: Que resto?
Eu: A vida.
Fante: Por isso eu odeio cadernos culturais.
Eu: Você imaginava que ia ser usado como pretexto pra um tipo exibicionista de literatura confessional?
Fante: Seja como for, eu não tenho nada a ver com isso. Eu não disse que prefiro Zaratustra a Jesus ensangüentado na cruz?
Eu: E a culpa que corre no seu sangue? Eu, por exemplo, depois de um ano de merda, estou começando uma nova história, um novo amor. Às vezes me flagro pensando que essa história toda vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. Mas não sei se faço isso só pra não perder o orgulho quando der merda, eu dizendo: pelo menos eu sabia que ia dar merda.
Fante: Você não viu pra quem eu dediquei meu livro? To falando de mim, não do Bandini. Tem gente que confunde experiência com experimentação. Experimentação é coisa de sociólogo, gente sem imaginação ou sentimento. Experiência é outra coisa. A vida pode dar um romance, mas a vida não é arrumadinha como um romance. Ou você vive o seu tempo, a sua condição e mergulha nisso, ou vai fazer outra coisa. Caso contrário, todos os roteiros estão traçados pelo conjunto de lixo que você leu e ouviu. Inclusive o meu livro pode virar lixo numa situação dessas.
Eu: Camisa pólo, sapatos brancos e óculos escuros, não é por aí? Nunca fui a Los Angeles e o que me impressiona é a variedade e o número de formas de destruição da cidade. Terremotos, maremotos, animais selvagens perdidos devido à expansão das avenidas, especulação imobiliária, um ar meio apocalíptico que torna a beleza mais urgente, a vida sempre está logo ali, a um passo, mas nunca é real porque sempre está à beira da morte.
Fante: Você não devia se gabar disso, você é de Brasília. Você deve entender alguma coisa de deserto. Poeira também não falta, cada palmo de terreno conquistado à moda turbulenta do velho oeste, tempestades de areia cobrindo a cidade inteira, o céu vermelho, azul de sanguessugas, branco, translúcido e você ali sozinho, debaixo dessa luz que nunca está parada, afundando nos monumentos paranóicos, você também ali sonhando com a sua princesa maia ou pelo menos acreditando que um dia vai encontrar a palavra certa, o percurso que vai fazer da poeira e do brilho uma coisa só, ao mesmo tempo bela e decadente. Que vai dar um pouco de alegria para os solitários e perdidos.
10/17/2012
O blues do rato de biblioteca
Você não esperava tanta ternura
de um rato de biblioteca e o silêncio dos planetas
e o infinito que assusta e tanta especulação
barata, assim à toa passo os dias conversando com mortos
em páginas de livros, microtelescópios, tabuleiros espíritas
e a luz do sol batendo nas páginas, uma cartela
de ácido lisérgico como calendário.
Você não esperava mas um coração de papel é mais inflamável
apesar de tão remoto que o silêncio dos planetas ali se inflecte
e cada livro é uma faísca adormecida esperando na estante
em que se escuta por um instante a lendária confabulação
entre dor e esperança, toda filosofia quer ser música
e toda música: blues.
Quando o blues faz até as paredes pulsarem nas capas coloridas
dos livros, como há algo de blues nos contrastes das cores dos planetas
e nas cores anímicas das emoções desencontradas
o blues é mais azul que toda melancolia de um coração vermelho
faço de conta que não é comigo e pergunto sobre a metafísica
de tudo isso o que pensavam os antigos
sobre o conceito de alma e invento a metáfora desprevenida
um peixe azul que brilha no aquário obscuro da vida, ressonâncias
de vidro e água, o blues é uma luz de cobre, é tudo que se entreouve
nos vestígios deixados pelas gerações que compõe uma única
e incoerente música no modo como o filósofo caminha
na solidão do poeta, na posição dos planetas
compondo um invisível e atuante cenário para os atos funestos,
o percurso da lágrima pelo rosto Entristecido, entretido em sua profunda tristeza.
O romantismo é azul celeste e gruda na alma como uma rima
nas paredes do quarto – existe na dor ancestral
da idade da árvore arcaica e blue da lamentação
onde os velhos cantores concentravam a dor de tantas gerações
e gerações: toda dor, afinal anônima como a invenção do blues
sob a mesma antiqüíssima árvore, de acordo com a história
que li num livro qualquer blues é seiva espessa e lenta
misturada ao sangue é como se desde criança
você tivesse comido a lua em pedaços mínimos numa colher
e meu sangue então é frio e reflete o brilho do seu coração
no escuro.
E tudo isso é música, o blues é o comum dos lugares-comuns
a faísca que acende o fogo no coração de papel.
Meus amigos intelectuais não se enganam comigo
eles sabem que quando os vejo eles são como peixes num aquário
e o cosmos é mesmo uma cúpula de vidro de onde deuses observam
e nossas verdades são bolhas que logo estouram contra a superfície
que quando os escuto eles não dissertam, mas cantam
um canto sem letra ou mensagem, uma entonação
de arrogância, frustração e miséria pedante.
A desolação, Bárbara é mais criativa que todos nós
e até merece um nome
próprio, Desolação, escoadouro de brilho estrelar
pra onde todo fluxo vital é banido e retorna, como um filho pródigo
aproveitável: sem o quê não haveria cores para planetas
e nem olhos que registrassem tais cores e nem almas se perguntando
por meio do blues, sobre o sentido de tudo isso.
(Garotos cantam o hino nacional
olhos vermelhos dentro de um camburão –
porque cantavam um blues no ponto de ônibus:
venho da cidade mais desolada onde até os punks são blue).
É por isso que sou um rato de biblioteca e mesmo assim ouço o blues.
ou queria cantar, o que dá no mesmo e fecho o livro
porque o canto do blues é o canto
um gole de vinho
derramado sobre o conceito de quem procura o blues
Saturno está mais forte nesta noite
o céu é uma cúpula líquida que filtra o brilho de estrelas
quanto mais azuis mais incandescentes
Mexico city blues repousa na estante
estando no blues desde antes do início.
de um rato de biblioteca e o silêncio dos planetas
e o infinito que assusta e tanta especulação
barata, assim à toa passo os dias conversando com mortos
em páginas de livros, microtelescópios, tabuleiros espíritas
e a luz do sol batendo nas páginas, uma cartela
de ácido lisérgico como calendário.
Você não esperava mas um coração de papel é mais inflamável
apesar de tão remoto que o silêncio dos planetas ali se inflecte
e cada livro é uma faísca adormecida esperando na estante
em que se escuta por um instante a lendária confabulação
entre dor e esperança, toda filosofia quer ser música
e toda música: blues.
Quando o blues faz até as paredes pulsarem nas capas coloridas
dos livros, como há algo de blues nos contrastes das cores dos planetas
e nas cores anímicas das emoções desencontradas
o blues é mais azul que toda melancolia de um coração vermelho
faço de conta que não é comigo e pergunto sobre a metafísica
de tudo isso o que pensavam os antigos
sobre o conceito de alma e invento a metáfora desprevenida
um peixe azul que brilha no aquário obscuro da vida, ressonâncias
de vidro e água, o blues é uma luz de cobre, é tudo que se entreouve
nos vestígios deixados pelas gerações que compõe uma única
e incoerente música no modo como o filósofo caminha
na solidão do poeta, na posição dos planetas
compondo um invisível e atuante cenário para os atos funestos,
o percurso da lágrima pelo rosto Entristecido, entretido em sua profunda tristeza.
O romantismo é azul celeste e gruda na alma como uma rima
nas paredes do quarto – existe na dor ancestral
da idade da árvore arcaica e blue da lamentação
onde os velhos cantores concentravam a dor de tantas gerações
e gerações: toda dor, afinal anônima como a invenção do blues
sob a mesma antiqüíssima árvore, de acordo com a história
que li num livro qualquer blues é seiva espessa e lenta
misturada ao sangue é como se desde criança
você tivesse comido a lua em pedaços mínimos numa colher
e meu sangue então é frio e reflete o brilho do seu coração
no escuro.
E tudo isso é música, o blues é o comum dos lugares-comuns
a faísca que acende o fogo no coração de papel.
Meus amigos intelectuais não se enganam comigo
eles sabem que quando os vejo eles são como peixes num aquário
e o cosmos é mesmo uma cúpula de vidro de onde deuses observam
e nossas verdades são bolhas que logo estouram contra a superfície
que quando os escuto eles não dissertam, mas cantam
um canto sem letra ou mensagem, uma entonação
de arrogância, frustração e miséria pedante.
A desolação, Bárbara é mais criativa que todos nós
e até merece um nome
próprio, Desolação, escoadouro de brilho estrelar
pra onde todo fluxo vital é banido e retorna, como um filho pródigo
aproveitável: sem o quê não haveria cores para planetas
e nem olhos que registrassem tais cores e nem almas se perguntando
por meio do blues, sobre o sentido de tudo isso.
(Garotos cantam o hino nacional
olhos vermelhos dentro de um camburão –
porque cantavam um blues no ponto de ônibus:
venho da cidade mais desolada onde até os punks são blue).
É por isso que sou um rato de biblioteca e mesmo assim ouço o blues.
ou queria cantar, o que dá no mesmo e fecho o livro
porque o canto do blues é o canto
um gole de vinho
derramado sobre o conceito de quem procura o blues
Saturno está mais forte nesta noite
o céu é uma cúpula líquida que filtra o brilho de estrelas
quanto mais azuis mais incandescentes
Mexico city blues repousa na estante
estando no blues desde antes do início.
9/27/2012
Ainda resta explicar porque num ou noutro ano, nalguns meses, dias (por exemplo, entre setembro a outubro de 1973) o céu se converte num calabouço, escuridão de bronze e tantos girassóis impossíveis cultivados com sangue procuram por um sol que recua para além da dor, porque o tempo reflui contínuo em todas as direções mas de repente parece resolver se adensar, viscoso, nauseante e nós, que vivemos a luz vaporosa azul tão bela e banal, nós, os irreais, só de o olharmos nesse estado sentimos em calafrio que a realidade só sabe falar a língua do terror.
9/16/2012
Redor para Masé
um escritor viaja de trem,
a letargia faz querer avançar.
sem chumbo nem a ironia do vinho.
Masé Lemos
não se pode avançar.
porque tudo
é recusa
da pedra
tempo, tempo, tempo
todos
ouviram a delicadeza
do lisianto
na brisa
abalada
calados,
feios e nus, não tivemos
fogo
quando o ventre
anoiteceu
e acordamos
ancorados
na dor da sombra.
pedra, pedra, pedra
origem da voz,
orgia de pássaros
grão e assobio
gelo e espanto.
não se pode avançar.
tempo, dor, pedra
9/14/2012
Porvir para Eliana
Porvir transfigurado.
O que é Teu Ser,
o que é tua carne,
e a chegança
de cartas ao vento
o que é tua linguagem
passagem
pelas águas
tentativas,
filosofias fracassadas
lassitude, lentidões
uma bala
que te fere
de raspão
o que é teu Ser
o que é tua Língua
Ilha Deserta
onde se penduram
escolhos,
manhãs,
coisas mortas
tesouras,
cadelas,
mulheres
de pernas abertas
um corpo aberto
decomposto
no asfalto
o que é teu Ser
o que é tua Língua
no lilás de tudo
que subverte.
9/13/2012
Morador de Brasília, Vírgula
Céu vermelho. Céu, dourado. Azul irradiando-se entre traços, de nuvens. Vênus brilha mais, do que a lua.
Imagine que você está num teatro, na obscuridade da platéia. A orquestra se prepara para tocar mas sem, o violonista. O violinista levou uma, porrada de fuzil, no cotovelo. A orquestra se prepara. Um cadeado, inútil resguarda porta enferrujada. Sem motivo de existência, a porta.
Céu vermelho – luminoso que se expande, ao contrário, como se ele se, contraísse, uma luz em fuga ao avesso.
Imagine que sob, as calçadas sob, a terra sob as raízes (uma) voz quase, inaudível – só ouvida por quem se imagina ossada de operário da construção – esquecimento asfaltado, ali se abafa. Monumentos árvores de todos, os cantos ipês: jazigos.
Imagine que a Esplanada e sobre a, Esplanada o céu que nesta hora tende ao violeta nada mais são, do que imensa lápide de cemitério, de indigentes. Vocês foram, mortos porque reclamaram da comida, estragada.
Agora se imagine encostado, na parede tranqüilamente. Um livro está sendo lido. Não há frio, alguém, esteve ali encostado muito antes de, você. De frente para a parede a testa, colada no concreto com suor de medo. De onde virá a próxima, porrada? Saber isso já seria, um alívio. Sem saber o motivo você pegou, o livro de Lautreamont, justamente, naquela página em que ele diz: “sou, sujo” como uma voz voltada para, dentro como se a brutalidade fosse o fulcro de todos os livros que, jamais, foram escritos.
Céu azul escuro, apagado. Como um azul brotando, da transparência.
A luz, agressiva do dia ilumina unhas bem, feitas cheias de anéis, esmalte, transparente: você as entrevê sob o breu do capuz dos dias vividos no mais escuro da dor e do esquecimento, pelo menos é o que você gostaria, de esquecer. Você chega em casa e a coisa não te larga mesmo, em tua vida confortável.
Você olha a janela um ipê amarelo cujas folhas são unhas reluzentes e o calor perfaz auras em torno dos galhos: feche a janela, rápido!, para essa beleza sufocante.
- Seja bem-vindo, à sua cidade.
Imagine que você está num teatro, na obscuridade da platéia. A orquestra se prepara para tocar mas sem, o violonista. O violinista levou uma, porrada de fuzil, no cotovelo. A orquestra se prepara. Um cadeado, inútil resguarda porta enferrujada. Sem motivo de existência, a porta.
Céu vermelho – luminoso que se expande, ao contrário, como se ele se, contraísse, uma luz em fuga ao avesso.
Imagine que sob, as calçadas sob, a terra sob as raízes (uma) voz quase, inaudível – só ouvida por quem se imagina ossada de operário da construção – esquecimento asfaltado, ali se abafa. Monumentos árvores de todos, os cantos ipês: jazigos.
Imagine que a Esplanada e sobre a, Esplanada o céu que nesta hora tende ao violeta nada mais são, do que imensa lápide de cemitério, de indigentes. Vocês foram, mortos porque reclamaram da comida, estragada.
Agora se imagine encostado, na parede tranqüilamente. Um livro está sendo lido. Não há frio, alguém, esteve ali encostado muito antes de, você. De frente para a parede a testa, colada no concreto com suor de medo. De onde virá a próxima, porrada? Saber isso já seria, um alívio. Sem saber o motivo você pegou, o livro de Lautreamont, justamente, naquela página em que ele diz: “sou, sujo” como uma voz voltada para, dentro como se a brutalidade fosse o fulcro de todos os livros que, jamais, foram escritos.
Céu azul escuro, apagado. Como um azul brotando, da transparência.
A luz, agressiva do dia ilumina unhas bem, feitas cheias de anéis, esmalte, transparente: você as entrevê sob o breu do capuz dos dias vividos no mais escuro da dor e do esquecimento, pelo menos é o que você gostaria, de esquecer. Você chega em casa e a coisa não te larga mesmo, em tua vida confortável.
Você olha a janela um ipê amarelo cujas folhas são unhas reluzentes e o calor perfaz auras em torno dos galhos: feche a janela, rápido!, para essa beleza sufocante.
- Seja bem-vindo, à sua cidade.
9/06/2012
LÁGRIMA para ALDEMAR
Hão
de ser tristes os teus
e os meus dias
quando os relâmpagos rasgam
o silêncio de tua
varanda
e passos de medo
preenchem o bosque.
A raça
declina uma vez mais
e arrefece junto
com a ceifa
de um podre trigo.
Nem águas nos salvaram
para refrescar
nossos pés
e nossas andanças
lavradas no negrume
Inventamos umas estórias
absurdas
para fazer
nossas filhas dormirem
elas tiveram a idade do sono
no berço
ou numa redoma
de vidro
onde inocentes
não desconfiaram
a desgraça do mundo.
hão de ser tristes
os meus
e os teus dias
malditos,
vamos andar
rumo
ao rubro dos outonos
e de um pequeno clarão
que se abre
toda vez
que se apunhala
a esperança.
hão de chorar
todos
na aspereza do mundo
(porvir transfigurado) -
9/01/2012
sutra, 1
O centro não existe,
amores
marginais arfam
convulsivamente
enquanto gemem orações
hard na penumbra de templos
com letreiros de neon O
menino
que olha pra você de
dentro
dos espelhos só escuta o
silêncio, décadas
de silêncio nos olhos
velhos
do menino que guarda
negativos
de tantos corpos e
gestos de comunhão
úmida e ardente pulsando
carne adentro, olhos
nômades que leram escrituras
de esperma sobre papiros
microirrigados
por sangue e linfa Sim,
você cobre
os espelhos com lençóis
tatuados por suor
e secreções, tocados
pela poesia das luzes
artificiais, mas isso
não cala o menino
que recita sutras
intermináveis: ‘santa
tereza
salvai-me desse mar
de
gozo e de melancolia que nunca ninguém vai
saber
o nome, são joão da cruz, acende
qualquer
lume que desencante o espelho’
O centro
não existe, mas o
holofote de outros
olhos lança você no
universo sem deus
onde flores sem caule
espreitam
na terra amiga o desejo
da seiva,
da casa, ao som do
cântico dos cânticos tangido pelos anjos
do inferno e da última
esperança O abismo da
orla desses olhos é um
dos orifícios por onde
você avança
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