11/30/2006

A vida toda pela frente

Ele tinha um código de barras
colado à nuca,
com preço, peso, calorias.

Era um exemplo de balanceamento equilibrado.

Mas já estava no limite
de seu prazo de validade.

Aos poucos, seu coração foi parando de bater,
depois o fígado,
os pulmões
e o aparelho urinário,
sem falar em sua digestão,
esquecida em um restaurante de quinta
há alguns meses.

Um dia, um caminhão parou
em frente à sua casa.
Nele, em letras grandiosas,
seu futuro previsível:
Troca e Reposição.

Calmamente,
desligou a tv e
enfiou uma faca em sua nuca,
serrilhando a pele,
para cima e para baixo,
devagar.

Puxou o último fio de massa sangrenta
sem um gemido
sequer.
Misturou carne, código e sangue,
à sopa de batatas que tentava engolir.
Pulou a janela
e respirou fundo.

11/28/2006

nº 15



Sumidouro das coisas, espiral
que tudo abarca – as emoções
no varal, quarando sob o Sol das décadas, enquanto a pele
esturrica.
Se me chegasse o Bem, ávido, indeterminado, frio como um tição
iniciaria o primado da Esperança e, em torno da fogueira,
sem ás na manga – observem bem, senhores – seria mesmo o Paraíso.

(in Notas Marginais)

Fuscum Subnigrum

Duas límpidas águas do teto em ogiva levam a acústica ao miolo dos ouvidos passilentes, por várias nuanças de creme e branco areados. Castiçais castecidos adornam os flancos do altar que ao centro ostenta uma cruz, esfumante no desenho de parede pintada logo acima, surgerindo gradual por relevo baixo a esculposa nuvem-maria, vinda equilibrada à frente, mãos saindo raios e túnica de resplendor.

Abas lambentes, as alas levantes à nave sustentam com lisos cilindros seus capitéis. De uniforme combinante, os sentinelas das memórias futuras carregam flashes e escorregam fios nos perímetros que esperam ninguém pise.

A partir de mirante mezanino de jacarandá, ela conhece de outras olvidades um panorama assim ambiente. Escada caracol rangendo a qualquer peso, coleante ao lado. Paralelas tábuas levam à grade em hastes como gotas escorrentes aos fios, em grossa marrom calda. Passageira dessa inteira moledura, atalaia a soprano, acima e trás da cena em refulgor. Vultuosa em suas costas, mãos ao longo do vestido tendente ao chão.

Os convidados chegam aos pares, trios, aos meio-trios (com apenas criança, crianças) mas poucos demais pro gasto que se teve com canto-e-órgão, flores, arrumadores de carpete. Ela vê as gordas senhoras ciscando lugar entre os prudentes primeiros a sentar. Ensaia apenas mentalmente um vocalise. O padre ainda não deu o ar de sua plena graça: é de seu hábito delegar, desdobrigar-se em prol das irmãs e beatas, diligentíssimas no cuido patrimonial de qualquer propriedade que lhes caia nas ralas pias mãos. Quando é alguém externo à paróquia a cobrar pelos serviços canoros, o quanto essas não estridulam, vendo suas comissões esboroaçarem embora na abóbada celeste!

Ao lado, pelas bordas janelas, um relance do salão de frestas traz o serelépido bailado das damas honorárias, livres do ensaio posicional por um momento infantil.

De novo ao centro a atenção é logo acesa, mais claridade contínua traz em magnésio o início da filmagem. A noiva chegou, deduz a soprano. Quase incontido por um ou outro matiz hidráulico dos azulejos de base e a madeira de lei que ressoa aos pés sobre seus saltos no plano monádico acima, o deslumbre elétrico é mais cheio que mesmo o ar, e os leves tons puxam de seu peito impostado a emergente urgência do rasgar primeiro.

Só então cai de mãos, cravado no silêncio, o anacruz acorde. E da voz se susprende ao plano simétrico amplo, fundo da grã-alvura, uma diagonal pincelada negra.

língua vinte e oito

despeço-me
do espaço

com um grito.

línguas e cartas

de quem mais
me desmereço.

é chegada
a hora

do eterno retorno

minha angústia
inteira.

flop flop flop

asas fundas.

Aproximação a Numbers de Creeley 3

Cinco

Dois a
dois mais
outro agora
no meio
ou então ao
lado.

*
De cada
um dos quatro
cantos trace
uma linha
indo ao ponto
oposto. Ali
na intersecção
faz-se o
cinco.

*
Quando mais novo este era
o número requerido
para contas, e para
imaginar um conjunto
útil. De algum jeito o extra-
-um – que é mais que quatro –
me assegurava que havia
o que bastava. Dois e três
um e quatro está completo.

*
Como desenhar estrelas.


Seis

Misturando-se
tais formas
entre
dois e três –

no sexto
dia findara
a criação –
íntegra –
ou que o sol
é pleno
no equador & parece
parar, depois
retornando...
ou que isto contém
o primeiro número
(2), e o primeiro excesso
do número (3), o primeiro sendo
o membro do macho, o último
muliebris pudenda...
Ou dois triângulos entrecruzados.

11/27/2006

Viragem













A beleza está no excesso:

Na catedral gigantesca
Que cria mundos amorfos,
Animalescos, botânicos,
Moradas de fetos-insetos,
Homens-cnídios,
Guinchando palavras virgens
Que ninguém entende:

Ainda.

Todo silêncio transcende.
É toda uma imensa ilusão:
Há, em seu pensamento,
Um verso - caótico-

Que gira

Toda

A sua

Vida.
O poeta atravessa o rio o poeta passa sobre a ponte ele segue a água cinza a água desliza e o poeta caminha. O poeta é engraçado. O poeta constrange. O poeta repete algumas tornures ele muda suas tornures ele o poeta repete suas palavras o poeta come as palavras. O poeta não envergonha ele respira firme ele vai lendo alto sua poesia sua poesia impura sua geléia seu pensamento todo branco. O poeta o verdadeiro poeta ainda dorme sem peso de poeta o poeta é livre como pluma o poeta é gélido o poeta é idiota. O poeta se fixa como bulbo ele é bobo. O poeta pergunta para que serve o poeta. O poeta fala com ar constrangido o poeta fala das caixas concretas depositadas do mundo o mundo imundo do poeta é claro é escuro. O poeta organiza ele permanence. O poeta já publicou alguns livros eu não publiquei nenhum livro o poeta leu o meu poema eu ainda não escrevi nenhum poema. O poeta não admite o poeta. O problema do poeta é resumir seu trabalho. Qual a questão do poeta. O poeta anda a cidade o poeta se anima e se esconde. O poeta sabe de cor o gesto da poesia. O poeta não sabe o gosto da poesia. O poeta é muito importante. O poeta zonzeia. O poeta morre. O poeta é um poeta.

11/26/2006

língua vinte e seis

estou

em minha arena
silenciosa de punhais.

um quadro
pintado

arco e voz
crime fresco
onde o rubro

não me representa.

farto das vozes.

Aproximação a Numbers de R. Creeley 2

Três


Eles, agora, mais
um entre dois –
seja de um lado seja
de outro. Será
que eles sabem quem é
quem, ou simplesmente vão
com este pivô de entremeio.
Aqui as formas têm potencial.

*
Quando isto ou
aquilo se torna
escolha, este estado
das coisas trespassa.
Aquilo que foi
agora acordado
alterna entre
dois e um,
me todos.

*
O primeiro
triângulo, de geometria,
de pessoas,
soou como
ocasião única, eu
acho – começa
aqui, intangível,
o círculo –
um nascimento.


Quatro

Este número vale
como conforto, fato
seguro. Qual
mesa firme
sobre quatro. O cão
confortavelmente caminha,
e dois a dois
não perfaz militares
mas amigos amáveis
mãos dadas. Quatro
é uma praça,
ou círculo pacífico,
celebrando o retorno,
o encontro,
o triunfo do amor.

*
A carta que traz
o quatro de copas
é signo de experiência
de vida. Que outro
sentido haveria.

*
Uma porta
quatro – todavia
quem entra.

*
Abstrato – sim, qual
dois e dois
dados, quatro dados –
um e três.

11/24/2006

Zeitgeist






(música incidental: O Mundo é um Moinho , de Cartola)

O Espírito do Tempo eu nunca vi.
Devo estar cego ou ando desfocado,
se pra cavalo deste santo irado
não mostro vocação - nem pedigree.

Não sei se escrito ou psicografado,
disseram que ele anda por aí
disperso, esparso em tudo quanto li,
quando eu o procurava do meu lado.

E não me cabem passos nesta dança -
só a sensação de ter perdido o bonde
(ou visto as tais flores no ar, sem hastes).

Mas, ah, virando cabos e esperanças,
uma voz me sussurra não sei onde:
ainda é cedo, amor, mal começaste...

Bruxa

Na frente da obra de arte
A montanha
O céu
O chão

E no meio deles
As caras reviradas
As sãs obs
ce
ni
da
des

Ditas somente por mim:

Eu sou a minha verdade
Eu sou a minha trindade
Eu sou a minha dança

Aproximação a Numbers de Robert Creeley (de 1 a 0)

Um

Que condição singular
de florescimento
vertical…
vai por aqui,
vem por aqui.
*
quem eu era que
pensava ser
outro um por
si mesmo dividido ou somado
produz um
*
esta hora, este
lugar, este
um.
*
você não é
eu, eu não você.
*
me todos
*
como pau,
pedra, dada
coisa tão
fixada que tem
uma cabeça, caminha,
conversa, leva
uma vida.

Dois

Na primeira vez
em que foram feitos
toda terra deve
ter sido seus corpos
refletidos, num instante –
um fluxo de impressão
de que uma curva no tempo
voltava ao brilho da água –
a ternura em que vieram.
*
O que você quis
eu senti, ou senti que senti.
o que já é mais que um.
*
o estado da chamada
consciência é sempre
uma palavra perfazendo
este mundo a mais
ou menos do que é.
*
não me abandone.
me a me. um a um.
*
como se próximo
a mim outro alguém
se aproxima. Só
para fazer você
minha, na mente,
decifrar você.

11/23/2006

Poesia impura ou elegia a Tarkos

O operário está morto, eu estou vivo, eu sou vivo, eu continuo bem vivo e me levanto todas as manhãs. O canteiro de obras está aberto e o cimento ainda fresco é por mim colocado entre tijolos e os muros vão sendo feitos um após o outro. O operário não tem mais força, eu tenho força, força vital, força fresca, força inevitável. Eu trabalho e construo, o operário não constrói, eu construo, falo alto e sigo instruções. Ele não segue instruções, não tem mais vontade, eu tenho vontade, eu tenho força e continuo a construir, o canteiro está aberto, a massa é misturada em velocidade continua e veloz. A massa sedimenta os tijolos, os tijolos sedimentam a estrutura, o operário não trabalha, eu trabalho e levo cada pá de cal a cada parede construída, o operário está desaparecido, eu apareço. O operário não come mais, eu como e reforço a pele e os olhos. O operário não enxerga, eu olho e vejo. O operário atravessou fora da faixa para pedestres, eu continuei na mesma calçada até o fim do caminho, eu não atravesso, sigo as instruções, tenho todos os comprovantes, todos os papeis regulares. O operário é clandestino irregular, eu sou clandestino regular, ele desvia, eu não desvio, sigo firme pela mesma calçada, ele atravessa e não precisa provar que está vivo, eu estou vivo. A vida ultrapassa a morte.

língua vinte e quatro

lembrei-me de ti,
amigo

e de Rimbaud

um menino em estado selvagem
sabendo de tudo

e ao mesmo tempo,
aquela criança inócua

que apenas vagava
como um fantasma

eu escrevi muitos poemas
de Rimbaud

ele era meu irmão e amigo
caçava na floresta

amarga de minhas
lágrimas quentes

o que me recordo agora
DÉPART

assez vu. farto de ver.

assez eu. farto de ter.

assez connu. farto de saber.

uma das maiores dores
a partida

de um amigo

11/22/2006

língua vinte e três

semcor

o risco do abismo
aquilo que

ris-
ca
o
fundo

e sabermos

inconclusos

habitar na língua

...

















Guarda teu espírito.

Quero-te corpo, agora.

Feito madeira espessa,
Lambida lenta
E grave,
Teus sons esparsos pela casa.

Quero-me toda,
Inteira,
Tua,
Perder os dias e as luas -
Nessa quase-morte,
Anoitecer.

11/21/2006

Circunstância

e se fosse o aperto
de mão
incômodo
talvez incomodado?
e sair rápido
em meio ao barulho
do bar

maladroitement?

ma

la

droi

te

ment.

11/20/2006

língua vinte

uma música lenta
e italiana

vem e me mata
aos poucos

tua língua
toca pelas levezas

do mundo

um mundo torto
perdido aos pés.

estamos no topo
do NADA

e rosagiramos
ao início de.

tua língua ainda
erra no delírio

quantas estudos
e planos,

que nada valem
nas asas

e nas águas.

um mundo errático
ao fundo

e habitar o tempo.

EISOIMPREVISTO


símio cyborg,
ponta do iceberg,
sangue & simulacro,
bêbado embarque,
abre a mínima escotilha
e sai dentro do oráculo:

- esta oscilação
esta incerteza
as cartas na mesa
não embaralhadas
mas espalhadas, ao léu.
leio as linhas
das tuas mãos
seja o que for

nada a ver

danou-se a metalinguagem.

11/19/2006

dois em um

(I)

















Em São Paulo persiste um ruído
que arde.

Ele cega.
Tira o paladar.


Ele te faz caminhar a esmo
pelas vielas de calçadas
velhas,
com grama rala entre as pedras.

Ali,
mora um barulho encanado,
branco,
seco,
que te faz estátua de sal.


Em vida.


(II)

Da música que existe em nós
clique aqui para ouvir*

Ele fala e eu escuto, atenta. Sua boca se move em variações circulares, ocas. Seus olhos arrebentam-se em mil sóis, no branco de um céu de inverno. Faz frio. Penso em suas mãos, há pouco. Eram quentes. Ele fala mais uma vez de seus feitos, de seus amores, de seus grandes e enormes planos. Aos poucos, esqueço tudo aquilo que ele diz: ouço apenas a música que se desenha entre as mesas e as cadeiras. Ele repete erres e esses de um jeito tão doce... suspiro, como uma criança com sono. Ele sorri. Nossos cheiros se tocam no ar, e o vento gelado que entra pelas frestas das janelas, cristal transparente, estala em seus dedos. O som de sua voz preocupa-se comigo: você entende? Concordo com um movimento de canto de boca, e ele fecha os olhos. Aproveito para registrar o contorno de seu rosto, a cor de seus cabelos, o áspero da barba. Ainda sinto sua aspereza em meus lábios. Passo a língua neles e eles ardem. A música diminui o ritmo, abaixa a intensidade. Seu olhar foge numa menina que chora, na mesa ao lado. Fixo o meu em seus braços, e me lembro do dia em que ele me abraçou pela primeira vez. Gosto deles, da textura da pele, da força que vem deles. Meu frio aumenta. A janela ao meu lado embaça com minha respiração ofegante, nem vejo mais os carros lá fora, nem as pessoas passando, nem a chuva que começa a cair. A imagem dele me amando naquele dia volta e abaixo a cabeça segurando a boca, japonesa. Ele me encara: você entende? Não falo nada. Apenas ouço a música. Ele se levanta e vai embora, me deixando sozinha, afundada em minhas mãos trêmulas e meus cabelos soltos, sem entender.

11/18/2006

Alma,



beira do poço
silêncio
o côncavo do Homem
ao mesmo tempo
espelho e
fonte

O ensino superior particular no Brasil - impressões.

Num mar creme vertical de calafate, a brecha. Um descuidar meu pacato no batente, tirando o resto pra centro, do extrato de atenção. E logo ali, é só notar, a massa negra repousa as vontades de todas suas patas, na altura do branco dos olhos.

Sua presença de inseto, instantânea ao susto, apenas finge se esquivar com minha ida ao banheiro, que nada faz esguichar numa tensão dessas, como se o besouro estivesse em minha casa, e no esforço de mudar de cômodo residisse um esconjuro do problema, pra não ter de lidar. Mas qual que isso funciona! Ao de novo abrir a entrada, após a quixotesca rinha mental contra um anônimo basculado pela porta da latrina que insistia em estragar via assovio o tema dos oompa-loompa, não podia dar outra:

Continua lá, lânguida e demonstruosa em sua rede de apoios esquálidos, que prodígio, mulher em treliças, a carapaça dos cabelos cascateando até a foz da cintura. Encara-me como a um aluno:

— Tem turma pra sair daí?
— Se você chama de turma o vultoso montante de um.
— Pois você no caso entra, não é isso?
— Entro pra continuar mantendo aluno um, quero ver contudo se talvez não, estou voltando aqui do reservado mas ele pode ter partido.
— Não, tem alguém aí dentro. E que me disse o que, sem detalhe, me abandonou contudo ao justo agora de entender: você dá aula, não recebe.
— Sim, com efeito, e mais se considerarmos ainda o numerário onerante enquanto atrasado. Por isso quem lhe disse mantém o índice.
— Laura, muito prazer.

E mais bastam duas ou três frases de gesto para o alheio a engolir entre as paredes e seus efeitos.

Cavalos seriam deuses se desenhassem

acenda o cigarro,
agora que o sol vai caindo
guarde um resto de calor impreciso,
jogando as cinzas no chão.
observe as bailarinas que chegam,
a luz que se acende sobre elas,
a lona preta estendida como palco improvisado,
mas antes do espetáculo,
que provavelmente será uma bela merda,
vá para o hotel que te espera
caindo aos pedaços
e sob o ar condicionado, mastigando fritas geladas
somente então se pergunte
quando foi que o Medo chegou


(Maria Bentham – OitO-OlhOs entra na sala:
vem aqui na frente
pra que todos te vejam.

você está vendo,
o Medo?
)

11/17/2006

língua dezessete

não colocarei flores
em teus cabelos

não te carregarei
no colo

recusarei teus sonhos

não teremos filhos

não iremos visitar
as malditas
igrejas católicas

teu deus é meu deus

e nem o sabemos

não beijarei tua testa

não te enxergarei
pela fresta

não serei teu

e serás sempre

o meu último poema

Mofo

o muro de contenção. uma linha vertical modesta jamais humilde segurando a linha de sua encosta defronte para outra linha, aparentemente infinita mas fugaz e paralela de destino sempre certo. um muro público, traços de um refluxo distante, contendo a praça, traçada a singelezas nervosas costuradas pontos distantes. muro alto branco com pedras, com etiquetas, mesuras, deslocado, contendo com ele um muro. um subúrbio é sempre desolado. muro limpo de pedras guarnecido. uma província é sempre isolada, parede limpa de pedras abastecida. desloca o muro, pinta o muro perdido em sua altivez sibilante, contenção contida, esnobe fingida velha como a dor de dente em formatura.

11/16/2006

A morte do leitor

vento frio
é coisa sólida
contra a pele.
cada lágrima
gota de sal,
sol e chuva,
parecem fantasmas
as meninas de Campinas.

é em mim, contra mim,
a partir de qualquer coisa em mim
que o frio é assim?

*

pra quem falo
e me calo?
se me calo
há um desdito,
um mandamento implícito
de silenciamento?
entre o silêncio e o reles
e barato cala-te boca?
o que se manifesta
quando o falo o que falo,
pra você não sei
quem
por quem
falo e me calo.

Non-smoking Duchess


"Mas aquela que adoro, a hierática duquesa,
Nobre como as reais senhoras de Brabante,
Como a hei de pintar igual e semelhante
Se não há Som nem Cor em tôda a Natureza!"
(Gomes Leal)

Reflexos à pele esticada da testa, de qualquer claridade. Mancha de negro fundo para a figura do rosto o tênue vento, pintando cabelos. Está sentada, com o dedo na tala que torceu, acesso de raiva. Fala renitente pelo fino do nariz. Tesas costas, restos de bailarina. Preguiçosa pela perda da copa, causar-lhe-á a flâmula sombra na rua até despedaçar-se, enfim descrentes todos do escrete. Seus bicos dos saltos são finos demais. A boca faz traço, retendo úmida um friso de brilho.

Roubemos dela um abraço, selando por pouco o vácuo das fatias exiladas de seu plexo.

Um trejeito do cenho escapa em trajeto ao pleno olho. Coitada da fome de quem guardou da duquesa o contato. Não paga tal privilégio o lastro de mil rubis. Nem quebra o copo de brindada alegria ao bebê-la o peito em dó de mil Caubys.

11/15/2006

amor amor



e derramada assim em sua boca
lábara palavra líquida ardente lava espessa ao fim
luminescente rum leite de sílabas sabor
de duro travo um pouco amarga
eu sei você diria
mas não que apague o último sorriso
e o que me capta o olhar
em que se foram enfim
se foram

lábia de constelações em sua boca
acende

11/14/2006

Noa




por que você canta noa
enovelando as ondas do rio

a sua presença
insinuando os nós
[nós são sempre nós]

as pontas
cordas
fios
cabelos
linhas
pêlos
lãs

língua quatorze


[MÁGOA DE SERAFIM]

Os chavelhos descem à fronte do pentagrama.

Cancros terríveis ardem nas bordas do tempo.

Todos esmagados por este volumoso rebento da noite.

Alheias, pálidas hortênsias vão crescendo,
longínquas.
E os sepulcros vão gemendo.
As sombras se projetam no anjo.
O caos recolhe os esquecidos.
(do livro Cavalos do Inferno)

Ênfase

O leite ferve, avança veloz para as bordas e se espalha sobre o alumínio fosco. Você gira com ênfase o botão. O que resta seus olhos evitam. Talvez o estalo quebrado, uma dobra escondida, o canto recolhido das sobras. A xícara já esfriou o café e você ali parado. Esta simplicidade expressada em seus olhos, o abandono às luzes fluorescentes que invadem as mais recôndidas circunstâncias, o impregnar de índices translúcidos. Apenas algo que se agita acaba.

Desterrado (Um LP encontrado no Acre)

Lado A (A situação hermética)


- Se você morrer hoje,
flamívomo,
veias de vidro,
hidromel,
Azar,
vai ficar rolando entre as pedras do caminho
sem descanso, um nome qualquer,
seu nome, estas agulhas continuarão
ferindo sua boca por dentro, até depois da morte.
este é o castigo, distraído.
os piratas chegaram pelas tubulações
junto com os grifos mercadores de sangue congelado
e levaram todas as letras,
mesmo as mais secretas, mesmo as trancadas nas gavetas,
mesmo as indefinidas meras manchas
de quando você pensava que era um estúpido insone
sonhando em ser a anemia de um poeta oriental.


Lado B (O hermético situado)

- com seriedade
ela punha a luva de borracha
o som era um gatilho
seco sobre a pele, as mãos ao alto
em oração ou assalto:

- só vai ser uma picadinha

(não sei porque, ela sorria)

11/13/2006

Wondering / Indagando

WONDERING
(Peter Hammill)

I will arise:
in the depths, I will open my eyes;
as my breath almost fails me, survive.

Wait - there's something unclear,
there's somethingI fear now drawing close.
Could it be you? Whose is that voice?
Is it now time to make a choice?
Ah - that irrational pain!
This ridiculous brain now bursts with joy.
Could it be me? Could it be now?
Should I begin to take my vows?

I will return:
as I live, as I breathe, as I burn
I swear I will come through,
with my hands stretching out in the dark,
with my eye pressed up tight to the glass,

Wondering if it's all been true.

INDAGANDO
(Trad. Löis Lancaster)

Eu ressurgirei:
Nas profundezas, abrirei meus olhos
Para, fôlego faltando, sobreviver.

Espere - há algo incerto,
Algo temível agora se aproxima.
Seria você? De quem é essa voz?
A hora da escolha afinal se aproxima?
Ah, essa dor irracional!
Esta mente ridícula explode de alegria.
Seria para mim? Seria afinal?
Eu deveria começar a rezar?

Eu voltarei:
Como eu vivo, como respiro, como queimo, juro que atravessarei,
Com minhas mãos abraçando o amplo escuro,
Com meus olhos apertados contra o vidro,
Indagando se foi tudo verdade.

Isso que você está lendo














Isso que você está lendo
Marca os minutos e os segundos
Desse tempo que é só nosso:
Nem meu,
Nem seu,
Nem deles,
Mas nosso.

Chega de Você, Ela, Ele e Eu na poesia.

Nessa trama só existe
Nós.

11/12/2006

Câmara de Ecos (revisitada)



-Psiu...
-Onde estou? Este sítio desconheço...
-Grandes são os desertos e tudo é deserto.
-O que eu vejo é o Beco!
-Vês?
-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
-Carregado de mim ando no mundo....
-Dê-me a mão! Eis a jaula do tórax. Ouve? Não vibra – gane, este filhote de leão domesticado.
-Sou um jegue na tarde pastando um verso.
-Toma um fósforo. Acende o teu cigarro.
-Tenho fome de me tornar tudo o que não sou.
-Certo perdeste o senso, tresloucado amigo!
-Ah, se tudo o que devora o coração no rosto se estampasse...
-Oh, que me custa caro o entender-te!
-Todo o mundo é composto de mudança.
-Fique, pois, sobrancelha a sobrancelha, a meu lado.
-Julga-me a gente toda por perdido!
-Já que dura tão pouco a flor dos anos, gozemo-nos agora!
-Mas estamos por aí, com as mãos nos bolsos...
-Venha cá, para o abraço cruzado dos meus grandes braços desajeitados!
-Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
-Deixe que eu faça alarde da grandeza da tarde!
-Não quero saber de lirismo que não seja libertação.
-Inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Não se mate, oh, não se mate.
-Que barulho é esse na escada?
-O autor ainda está tateando atrás dum estilo...
-Posso escrever os versos mais ridículos esta noite (a memória é uma ilha-de-edição).

(de "plágios, samplers e outros balacobacos")

Flash


Uma casa, uma porta,
Uma chave.

Uma casa, uma porta,
Duas chaves.

Uma casa, uma porta,
Três chaves.

Uma casa, uma porta,
Aberta.

língua doze

VIAJOR


Finges que vens daí, ferida.
E me estendo nas pálpebras das folhas,
e no longo estrondo de minha dor.

Já não há gritos. O rouxinol entreolha
meu rubro rio. E ri. Duas facadas.

E de ventos grises me retalho.
Horas que se acortinam,
naufrágios que há muito desembaraço.

Teces, aracne, próximo às sobrancelhas
de meu leito, para que junto
às paredes eu mereça minha loucura e minhas asas.

Amor, meu coração é um brinquedo do Diabo.


(do livro O Amor Duplo e o Desespero das Águas)

11/11/2006

Nexo










Caminhamos por entre as lojas.

Flores de dinheiro, sem perfume,
enfeitam o busto firme das garotas loiras de cabelos lisos:
ferro quente e goma laca.

Elas sorriem-sempre
e suas cabeças ocas reverberam.
Nenhum fio sai do lugar.

Impressionante.

As pessoas-plástico, em êxtase,
gostam de organizar filas para pagar:
duzentas blusas estampadas,
quinhentas calças pretas,
cinquenta e cinco sandálias metalizadas.

Ao mesmo tempo, saltam de seus corpos
cheques voadores e alguns cartões-fantasmas.
Seus rostos exultam espasmos esverdeados
e suas mãos tremem, ao apertar certos botões.


Lembro-me daquela noite
e do enorme prazer que demos um ao outro.

Prefiro sexo.


A diferença:
?

11/10/2006

Glosando a glosa de L° da glosa de Camões & Um Link com o Amor


avis rara, Perdigão,
sofrido e meditabundo:

“quem colheu as minhas penas?
quem roubou de minha amada
asa, coxa e coração?
quem, matando, via apenas
o umbigo, a perdição?

quem viu as penas, maldição
dum chester vivo p’lo mundo?”

- ave mutante, lasanha,
não há mal que me não venha

11/09/2006

língua dez

puseram um manto
aquele

que nos tapa a boca

língua morta
e pó.
- lobos entredevoram

o antepasto
da véspera

olhos vermelhos, lassos

alma russa que tive
língua negra
que beijo

e eu não tenho pátria
minha língua é minha pátria

língua de lobo
alma russa morta.

marina entra
pela sala

com os cabelos molhados.

O Ex-Romântico




(trilha sonora: vinil de Márcio Greick numa eletrola stereo com uma saída queimada)
O poeta Antônio de Castro Alves, num dia 14 de março do século XXI, depois de expulsar uma pombagira de seu cavalo, enquanto os ogans tocavam no Terreiro,beijou a boca de três morenas, bebeu, pitou, cuspiu, se disse filho de Ogum e de Iansã, riscou uma espada e um ramo no chão ao lado de seu nome - mas antes de subir cantou o ponto:

“O pélago profundo e encapelado
que numa treva espessa brame e luta,
é só o mar batendo pra caralho
em uma escuridão filha-da-puta...”

Náufrago*

Fora do esquadro, as peças de roupa
Rotas, rasgadas, jogadas num canto
Os pés do garoto encaixados, e eu gritando
Gritando
Gritando
Porque é tudo assim, tão difícil?

Mais uma noite, mais uma,
Ele cheio de medo
E eu, incompetente, inútil,
Me afogando em seu mar
Segurando em sua mão,
E nada,
Nem um contato.
Nada.

Peixes morrem à nossa volta,
Mar vermelho de algas venonosas, ondas purpuras, vento branco,
Um barco revirando ao vento,
Água salgada que escorre de seu olho pequeno
E eu engulo cada uma,
Lambo sua face inocente:
Uma última tentativa frágil de contato.

Só que ele vive lá, em sua ilha.
De nada adianta eu chamar,
É lá que ele vive.

Será que um dia ele vem me buscar?
Será que ele vai me escutar,
Olhar em mim e ver outra pessoa?

O que eu quero é que ele quebre essa imagem,
Destrua o que está lá dentro,
Que morra e renasça,

Que viva, deus,
Que viva.

*trilha sonora: Smile, Pearl Jam (Pearl Jam)

Do amor

Tratado do qual só restou alguns fragmentos. Se certos especialistas afirmam que é impossível precisar autoria, origem ou data, outros dizem que o autor teria vivido na Grécia arcaica, uma vez que a maioria dos fragmentos datam do século V aC quando teria sido fixado pela escrita.

Dividido em várias partes independentes: Do vão sacrifício. Da alegria desconhecida. A melodia e as baladas. Das vísceras e dos humores. Da crueldade. Dos batimentos cardíacos. Da variação e do salto. Da folha a vogar na ventania. Da admiração. Do amor das crianças por sua mãe. Do rumor do mar e das cigarras. Do paladar e do tato. Do medo como necessidade. Fogo, ar, água. Do tempo e do espaço como elementos solúveis. Alexia e paixão. Do silêncio. Do roçar das algas no coração. Da multiplicidade. Da flauta ao longe quando o rio sobe. Do amor impróprio.

Outros fragmentos se tornaram conhecidos posteriormente, o mais célebre é sem dúvida Do amor como transcendência, entretanto, desde o século XX tem sido considerado por alguns como apócrifo. Muitos fragmentos continuaram a surgir ao longo dos anos, e mesmo até hoje, sem que nunca pudesse ser comprovada a autenticidade dos mesmos.

11/08/2006

língua oito

- língua permissiva

do logo
ao lodo

lago que se alaga

diz - vem.

língua na tua língua

nos mamilos in_
tu
mesci
dos

de dentro

aham, diz

vem, oquei.

língua de igual espanto -

Panelinha, Panelão, Panelaço


à meia luz, ao som de zeca baleiro ao violão,
nas mesas de alumínio branco sob o incenso de batata frita,
estão sentadas as panelinhas.
cada uma com seu jeito muito próprio
bem apropriado de adoçar, de deglutir, de edulcorar, de decupar,
de decorar (o ambiente):
cá entre nós entre os dentes, dizendo, aqui não aqui diferentes os idiotas nas mesas outras, sempre, aqui não todo mundo brother lá se odeiam aqui não inveja injeção objeção sujeição lá não lá só barbárie aqui sim todo mundo é bárbaro selvagem maluco por outro lado os de lá não são sim tolinhos lobinhos aqui só moinhos lá songamongas aqui sim todo mundo do bem por dentro bem dentro da mesa aqui os lá de fora não lá estão por fora são de se jogar fora dá o fora,

enquanto isso, lá
na balcão de bar de fórmica vermelha
os solitários também trocam olhares de cumplicidade
o que também dá na mesma
tudo é o mesmo dentro do panelão em que fervem as panelinhas em banho-maria
- só o que muda é o tempero e o jogo dos legumes.


tempero e legumes
minha vó me dizia
(que nostalgia)
são a alma do cozidão
diante da imensa panela de ferro

- mas vem cá, espera aí
que será este som de batucada?
meio disforme, raivoso demais, ruidoso demais,
risonha besta demais de dentes de metal demais sobre o mar cor de verde caipirosca
demais
atrapalhando os versinhos de zeca baleiro?

espia só:
é o povão batendo panelas nas janelas amarelas!
olha só:

estamos em 1984!

11/07/2006

Glosando a glosa de Camões...

Mote alheio:

Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.

Glosa de Camões:

Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.

Glosa de Lancaster:

A Perdigão limitada,
De uma apenas traulitada,
Sem nem dó nem piedade
Mandou dez mil empregados
Para o olho da cidade.

Perdigão é só sorriso.
Lhe seria agir errado
(Menos lucro é prejuízo)
Ter pena dos depenados
Que agora estão na pista.

Entretanto a outra pena,
Da justiça trabalhista,
Não faz mal que lhe não venha.

Trem Fantasma


(Dolores Duran em vinil arranhado, ao fundo...)

entropia de luzes prévias
como a treva e o cio
das estrelas cancros de rancores
vagos e ardendo (ocaso de promessas...) dentro
não paira nem
vacila (olhos vendados!)
eclipse final das esperanças sem premissas
plenário das ausências reunidas
azinhavre por sobre a pele cínica dos dias
azulejos brancos bisotados compostos contra a
louça azul de um ton sur ton como a agonia
das manhãs de cadafalsos entre as flores
fáceis onde eu não
conheço exatamente a fímbria
(joelhos contra
o chão!
pés amarrados!)
diazepan xenical paracetamol café de tez
amarga em chávenas de lata e a estreita
clara mas estreita várzea de uma voz
que cala e se multiplica dentro
das mesmas tardes de terra seca
fala seca beijo de saliva seca
píncaros de lama seca
(areia movediça!
merda!)
:

para enfeitar a Noite do meu Bem.

....

é porque gosto de cantarolar
graves e agudos
l'amour
lá lá lá
o silêncio é aconchegante
ele é quentinho
ele fica na cabeça
palpita na cabeça
e não se consegue tirá-lo de lá.

palavra que não se consegue
tirá-la de lá
é preciso gritar
mas não adianta
ficou grudada
minha mãe não me ensinou a falar.

Nada romântica ou Me engana que eu gosto*











É só de vez
em quando

que aquele tanto
todo

se transforma em canto
nosso

em unís- sono
em uni-verso
em verso e re-verso

em vidro transparente e metalizado
espelho de duas faces

que só

en-ga-na.


*não tem nada de romântico nesta poesia. E ponto final.

11/06/2006

Papo Musical (depois da glosa e dos sonetos de Norek)

Lupicínio+Chico+Noel =


o pensamento
parece uma coisa
de quem fica
à toa na vida
de destino
traçado no baralho
e mora onde fica
lá detrás do mundo;

língua seis

- língua morta

lavada
em rubro

língua que não
sabe
gustar-se de mel

língua enterrada
em veias
e pássaros calados

minha língua

que se cumpre
a fel -

Glosando o mote licantropo... ;)

T'rezinha de J'sus

O primeiro me chegou
Explodido dinamente
Duelando em mim por Ceuta,
Mas salvando a diferente.
Seu olhar mancava tanto
Que um gigante viu na hulha
Acertei com um pontapé
No traseiro desse pulha.

O segundo me chegou
Como quem chega do Tejo
Tinha três "eus" secundários
Um pé na cova, outro no brejo.
Da nesmargem só remou
E andou para meus ais
Seu patife, descarado,
Volte ao saco do seu pai.

O terceiro me chegou
Muito depois desse dia
Não era o da minha vida,
Mas a ficar pra titia
Eu não estava resolvida.
Ele então me agarrou,
Mas fui eu que o segurei —
Era taxidermista,
Foi então que eu disse-o-quei.

11/05/2006

neon



mascavo e dissonante
o celacanto
esmaga flores rubras flores outrossim
hiberna as estações como se não bastasse
e antes macera
o nervo flores bruma crivos som
essa nervura

(úmida e quente, assim)

daqui do subsolo tudo é muito escuro – onde repousam seus olhos
a luz pode cegar quem a deseja
e o mundo ancora
ancora
ancora
ancora

(levanta
a perna amor
mais
um
pouquinho)


no seu pulsar rascante
todo de ar-
estas contra o ar-
estado círculo transfigurado áspera esfera
já sem todo viço

(não pára não pára não pára)

ainda assim deseja se confrontar com a sagrada e in-
traduzível música dos arpões.

língua cinco

(e falaram contra mim com língua aleivosa
tua língua é um sepulcro aberto ...
Salmos)

e ele pergunta aos vulgares:

- o que houve com meu post língua quatro?

Cordeiro em pele de lobo

O primeiro licantropo
Segurava o cetro, trouxera o arado,
Civilizara a cidade, mas não a si mesmo.

Por isso: paulada nele!

O segundo licantropo,

Este apenas sonhava
Com uma árvore cheia de frutos-lobo
Os olhos queimando na noite escura.

Por isso: deita quieto no divã!

O terceiro licantropo
Descera pelo ralo podre da comunidade
Lambia os ossos das crianças
Era chamado de O Grande Traidor.

Por isso: eletrochoque no seu ânus!

O quarto licantropo
Descendia de todos os outros.
Não falava mais, grunhia,
Marionete desenhada por dedos finos e longos
Rajados de cinza e preto.

Por isso: nada! Pra esse só mesmo o silêncio.

Teve ainda a raposa que caiu na pequena cidade
E foi canibalizada em festa pelos concidadãos.
Teve ainda o menino-onça que matava sem querer
Pelo gosto mesmo de sangue, só isso.
Teve ainda a lobismulher
Que sabia usar os dentes como ninguém.

Agora olhe bem:
Toda essa fauna rosna dentro de você,
E não, ela não é o seu pior,
Aqueles olhos que brilhavam no seu pesadelo
Tinham o gosto salgado do mar,
O verdadeiro mar de absinto.
Aquele grunhido foi seu melhor idioma.

O castigo é que foi lógico, preclaro e prudente.

Em torno –

aos espaços
não penetráveis
da cidade proibida
e seus milenares
imperadores.

mensageiros
circulam
sombras e negros.

vestem
tecidos laranjas.

[e o cara de cavalo
em crinas clandestinas.

nas calçadas urbanas.

esparramam
fios
claros
cadenciados.

nas partes elevadas
de Copacabana.

a lua é cheia
vermelha.

seus corpos
diáfanos
movimentam-se
velozes
entre o sobe
desce.

[espalham-se
contraem-se.

dançam
música
dodecafônica
e seus músculos
extraviados
pouco a pouco
estiram-se
pelos pavimentos planos.

11/03/2006

enquanto isso,



o Homem-aranha espreita do alto
ele não tem nenhuma certeza
não ter certezas talvez seja uma certeza

o Homem-aranha não consegue separar a Luz do lado oculto
o mundo é híbrido e ele também
(voyeur do alto do edifício
metade inseto):
ele não pode ser feliz
olha o mundo e vê a própria imagem

o Homem-aranha não sabe mais desentranhar face e disfarce
até aqui tudo o que ele deixou
foi escrito com sua sombra
nas paredes

ninguém se interessa por uma escrita feita só de sombras.

Post Mortem














Seu corpo de cobra escolheu fugir
das mãos grossas e dos olhares pesados
dos lobisomens urbanos enfeitados
de criança.
Seria fácil concordar.
Suspirou, ao enroscar-se aos troncos e galhos
das árvores que ainda enfeitavam o local.
Viu que era aquilo o que tinha restado da vida
engendrada pela sua geração.
Um dia, tudo vai esquentar tanto que o mar vai virar nada,

segredaram-lhe as folhas de papel.
Ela olhou amarelo e sorriu.
Pensou nas falas de Bertolt Brechet:
Destas cidades ficará quem as atravessou, o vento!
Por fim, deixou-se ir, de olhos abertos.


11/02/2006

Então

Aí ele saiu de casa à espera de um incêndio vermelho
Aí ele atravessou a rua diante de um coração pendurado no velho pinheiro cheio de dentes
Aí ele cruzou três olhares de diferentes direções rancor ciúme e sedução e sonhou com espelhos partidos
Aí ele ouviu a conversa sobre o nada nadificante que se desnuda e que se tuda no ser transheideggeriano rumo à floresta negra num ônibus grená
Aí ele sentiu o calafrio da passagem da ventania deixada por um tubarão em atropelo dizendo antenados badalados tudo de bom um lance de lavagem que é muito legal na entrada tem um túnel o que estraga é o calor tem gente de olho no meu carro importado a mulherada a bandidagem
Aí ele foi prensado no subterrâneo no túnel marrom no odor de clorofórmio
Aí ele abriu o livro na página 53 na mesa bamba ou melhor 451 era a temperatura que ele gostaria se pudesse
Aí ele se viu cercado por um velho sábio que o avisou que ele estava usando como camisa na verdade uma saudação a Krishna
Aí ele descobriu que o céu azul eram asas de um pássaro parido nos olhos da menina que um dia acariciara o tubarão de plástico na areia da praia entre os turistas
Aí ele esqueceu o que tinha descoberto
Aí ele se deparou com a cabra velha parida não se sabe onde a mula que cagava dinheiro cujos olhos negros negros da cor das taxas de overnight
Aí ele aprendeu que o que sempre chamara de diversão era uma tropa diante da cidade inimiga abrindo os flancos para apressar o massacre ele aprendeu que devia ficar calado quando devia falar que devia falar quando devia ficar calado que a falação nunca se acabaria como se o silêncio silenciamento fosse e o reles e barato cala-te boca
Aí ele entendeu que a razão era preclara como uma camisa colorida sob o sol escaldante e que já devia saber que entender é melhor e mais prático que ser entendido
Aí ele derreteu entediado sobre a calçada
Aí estava na hora de lavar a louça
Aí alguém perguntou, e daí?

11/01/2006

língua um

quero ouvir-te
cotovia

que me dizes
dessa língua

escarlate
e gosma-lenta

quero ouvir-te
cotovia

e nessa língua
silêncio

mutez e êxodo
abandono

quero ouvir-te

nessa língua
penetrante

que entra
pelo osso.

Meta o esquema lá


Helio Oiticica é meu rei.
Ele fez o branco
misturar-se ao branco,
Ao negro,
ao extremo Fora
da marginalidade.
Trouxe o cara-de-cavalo
pra relinchar na bochecha rosada
das madames ca-ri-o-cas.
Meteu o esquema
da economia da arte
no seu buraco mais fundo:
a cloaca dos ovos de ouro.

Anarcotraficante de cores
bisneto de Nietzsche,
um dia, me disse:
Olha:
nada do que você vive
é verdade.
Por mais duro que isso seja,
Saiba:
É tudo música.